Lendas antigas, narradas há décadas pela Oralidade do Interior no Estado do Amazonas
Primeira História
TRÊS LENDAS AMAZÔNICAS
A Cidade Encantada do Boto
Aos
curumins e cunhantãs
Nossos antepassados não conheceram a escrita ou, os sinais gráficos (fonemas
transformados em letras), por isso, desde os tempos mais remotos, das tribos mais
desconhecidas da Amazônia, a tradição oral vem traduzindo todo um conjunto de
ideias e contextos regionais. Era nas
noites de luar amazônico, onde os velhos
e as velhas nas aldeias mais remotas, repassavam apenas pelo articular da língua, seus costumes e tradições, aos mais jovens de seu povo. Havia sempre um
circulo de curumins curiosos pelas histórias, as quais eram contadas e recontadas
pelos avôs desses velhos, quando, também, foram meninos no passado. Os rostos
dos curumins estavam sempre iluminados pelas labaredas de uma vasta fogueira a qual enfeitava esse circulo de curiosos. O legado da oralidade chegou
aos nossos tempos de criança também. Nossos avôs e avós sempre nos contavam suas
coisas do tempo de infância. Sempre nos emocionaram com os momentos bons e maus de
suas vidas, entretanto, também, nos deliciaram com as suas histórias
mais encantadoras sobre os mitos mais fortes da Amazônia. O Boto, a Mãe d’agua
e o Curupira foram sempre os entes lendários que mais inquietaram nosso
imaginário infantil em tempos de outrora. É por isso que agora estão aqui essas três
lendas, coletadas do imaginário e da memória amazônica.
O curumim parecia que nem tinha nome. Todos o chamavam só assim: curumim. Era curumim pra lá, pra cá, de dia, de noite... Desde pequeno ouvia aquelas estórias da tal cidade encantada do boto. Ele acreditava nelas.
Seu pai contava, seu avô contava, por isso findou acreditando que o lugar
existia de verdade.
Então ele acabou querendo ir conhecer a
tal da cidade. Só quem não contava essa estória era a mãe dele. Ela já não
gostava nem de se ouvir falar em boto, pois tinha muito medo daquele bicho. Uma
noite o curumim foi dormir, mas primeiro fez a tarefa da escola, pois a professora
era muito legal e não gostava de desobedecê-la...
Um mês antes de acontecer o grande Festival dos Botos em Maraã (2018), os jovens da cidade são ensaiados, em plena rua, com músicos especializados, suas danças para o espetáculo. É assim que acontece a festa do boto na pequena cidade.
Dormiu, e começou a sonhar... Estava na beira do rio quando um boto saiu de dentro d’agua e veio falar com ele. Tomou um susto daqueles porque o bicho não o chamou de curumim, mas pelo nome dele de verdade! O boto perguntou se ele queria ir até a cidade dele para conhecê-la. Mas o curumim disse que não dava, porque ficava no fundo do rio. Como é que ele iria respirar dentro d’agua? Entretanto, o boto falou que iria dar um jeito nisso. A única coisa que tinha de fazer era dormir mais cedo na próxima noite. O curumim só ficou pensando no que iria falar para sua mãe se ela perguntasse o porquê de se deitar tão cedo naquela noite?! O boto era "cheio de moda", falou para ele dizer que estava com dor de barriga. Por isso deitaria cedo. Então foi embora e o sonho acabou.
Porto flutuante de Manaus-Am, as 6:00 da manhã, durante a formação de uma grande tempestade, em janeiro de 2020, antes de acontecer a grande pandemia do Corona vírus. Segundo as velhas tradições dos amazonenses, não é bom está sozinho na beira do rio nesse horário...
O curumim acordou e já era de manhã. Teve que se
levantar. Passou o dia inteiro esperando
à hora de dormir de novo, pois queria porque queria ir à tal da cidade
encantada do boto. Quando chegou às sete da noite ele foi se deitar...
A mãe logo perguntou o que ele tinha,
mas fez do jeito que o seu amigo boto mandou. A mãe acreditou. E não é que o
curumim começou a dormir mesmo! O sonho principiou e, logo, já estava na beira do
rio, esperando o boto vir de novo. Quando ele chegou falou para o curumim se
deitar na margem e fechar os olhos, pois teria que dormir novamente. Mas ele já
estava dormindo e sonhando! O boto disse que tudo isso era para que ele não se
afogasse, então iria ter que dormir de novo, e dentro do sonho. Foi ai que ele
entendeu. Deitou-se e dormiu na beira do rio, de novo. O boto o acordou, mas o
curumim tomou um susto! Estava dentro da água e nadando muito rápido. Depois
eles chegaram à entrada de um igarapé, seu amigo boto disse para ele conversar
com as índias que se transformavam em vitórias-régias. Mas ele perguntou onde
elas estavam?! Respondeu que os esperava bem na entrada do igarapé. Quando o
curumim as viu se assustou mais uma vez! Era um susto atrás do outro. As
cunhantãs estavam dentro d’agua.
Ilustração da índia se transformando em flôr, esculpida na entrada da arena do Festival Folclórico da Ilha de Parintins (2014). A Lenda da Vitória-Régia, flor aquática da Amazônia, explica a transformação de uma índia em vegetal.
Da cintura para baixo eram flores, para cima,
índias. Então ele falou que queria ir à cidade encantada, elas disseram que ele
tinha de se deitar de novo, em cima do tronco de pau, e dormir mais uma vez. Somente depois apareceria o portal para se adentrar na cidade.
Mas ele já estava dormindo duas vezes.
De qualquer modo, fez o que pediram. Deitou-se no tronco de pau e logo dormiu,
pela terceira vez. Mas o tronco não era de pau, era a cobra-grande disfarçada - a boiúna.
Foi ela quem o levou até o portal. Entretanto, ninguém falou pra ele, pois poderia tomar
era um grande susto com a boiúna e ficar com muito medo dela. Quando acordou de
novo, estava do lado do amigo boto, na entrada de uma linda cidade, bem lá no
fundo do rio...
Escadaria da orla de recreação da cidade de Maraã-Am. Nos finais de semana os populares da cidade a usam como ponto de encontro, divertimento social e comunitário, para o tradicional banho de rio.
Havia uma escadaria enorme com muitos degraus para eles subirem. Era toda de vidro e cheia de luz. E tudo era enfeitado de ouro, prata, e muitos diamantes. Era tudo muito bonito, mas muito bonito mesmo! Tudo reluzia na cidade encantada! Após a surpresa com a vista do lugar, o curumim e o boto começaram a subir... Cada vez, que eles subiam um degrau, ia-se ouvindo uma música animada. Vinha de dentro da cidade. Batiam tambores e pandeiros, tocavam piano e violão. O boto disse que estavam fazendo uma grande festa para chegada deles, lá dentro da cidade. Quando terminaram de subir, ele viu muitas casas e um grande e belo palácio, todo feito de ouro. Era muito lindo! Era tudo encantador!
No exótico Festival dos Botos de Maraã (2014), os cetáceos amazônicos são as grandes estrelas da festa! São apresentados em forma de grandes alegorias para se encantar ao público. Nenhum outro lugar do mundo detém festas tão originais quanto as realizadas no interior da Amazônia. O mito finda virando realidade...
As casas eram todas de vidro e cristais, pareciam aquários! Os
peixes menores moravam nelas. Havia muitos peixinhos e, quando o menino ia passando em frente das casas, os peixinhos davam até tchau pra ele. Dava para se ver tudo dentro das casas por que
todas eram transparentes. Então ele ficou feliz, pois estava finalmente na tal
da cidade encantada do boto! Quando o curumim chegou no lindo palácio de ouro
do boto, tinha boto dançando para tudo quanto era lado, no dois pra lá e dois
para cá. Apesar de se estar dentro d’agua o curumim conseguia respirar muito bem. Porém, ele
se lembrou que estava dormindo e sonhando. Um sonho dentro do outro, e já era
pela terceira vez! A festa estava muito linda!
Tinha boto de todo jeito: do grande, do
pequeno, do roxo, do cor-de-rosa, e do vermelho. Todos gostaram dele. Todos
dançaram junto com ele. A festa ficou muito animada com a sua chegada.
Alegoria sendo preparada para o Festival dos botos de 2014, em Maraã. Na Amazônia é assim, enquanto o Curupira reina nas matas, o Boto tem uma cidade encantada no fundo do rio, mas ninguém nunca consegue achar, só se o boto mesmo levar a pessoa para conhecê-la
Na grande
mesa do salão, havia todo tipo de comida feita para bailes e festas: salgadinhos,
bolos, tortas, pudins, doces, refrescos, guaraná, frutas bem frescas e deliciosas, era tudo do bom e do melhor! Não havia nada feito de peixe e nem de crustáceos. Era uma festa animada demais! Não tinha
quem quisesse que aquela animação toda se acabasse. Uma botinha cor-de-rosa, de longos cabelinhos loiros,
começou a dizer que gostou muito do curumim. Ela disse que queria que ele ficasse
na cidade para sempre, mas ele explicou a ela que deveria voltar para casa. O curumim só
veio para conhecer a cidade. Os botos não queriam mais que ele fosse embora,
pois gostaram muito dele. Ele disse que não dava para ficar, pois tinha de ir
para escola, e ainda, ajudar o pai e a mãe em casa. Todavia, os botos disseram que
não! Que ele tinha que ficar! Pronto e acabado. A tal da botinha já queria até namorar com ele! Na
cidade encantada se cresce rápido, mas não se fica velho. Ele disse que não era "peixe" para viver no fundo do rio! Nesse momento, os botos se olharam ofendidos,
e alguns ficaram até muito tristes...
O banquete da cidade encantada também encanta ao estômago. Se há festa, tem de se ter boa comida! O boto sabe como convencer seus convidados.
O curumim achou a cidade linda, tudo muito legal, mas deveria voltar para casa. Os botos disseram que iriam encantá-lo para que virasse boto também. Ele não queria ser boto. O boto, o que era amigo dele, falou que se quisesse poderia ficar sim. Contudo, o curumim perguntou como que iria voltar para casa?Mas o boto amigo respondeu que, só quando a festa terminasse ele poderia retornar. Mas a festa nunca terminava! Os botos só viviam dançando e comendo, não estudavam e nem trabalhavam. A cidade ficava todo tempo cheia de luz. Toda hora era dia. A noite não chegava. Por isso a cidade era encantada!... Na verdade, os bichos que vivem no fundo do rio não dormem e, nem os botos. Se chegassem a dormir ele aproveitaria para fugir. Então começou a ficar muito preocupado. Já queria até chorar. E começou a pedir para voltar. Mas a tal da botinha não o deixava ir, nem sair do palácio podia. Era um grude só com o curumim. Ela começou a persseguí-lo e a agarrá-lo. Ele ficou com muito medo de ser enfeitiçado por ela. Queria por que queria fugir da botinha, e ela, saiu nadando atrás dele! Ficou desesperado quando a bota o pegou. Começou a gritar, desesperado, para que ela o soltasse, pois queria voltar para casa dele! Ele gritava, gritava, gritava!... Então, ele gritou tanto que a mãe dele o puxou pelo pé, mas ele pensou que era a botinha, e disse: - Me solta sua bota doida! A mãe dele ficou furiosa e perguntou se ele estava ficando maluco (mas quem fica maluco nem responde pergunta dessa natureza). Foi ai que o curumim percebeu que já estava era dentro da sua casa novamente. Era de manhã cedo...
Na Amazônia, e principalmente no Estado do Amazonas, os caboclos moram em comunidades rurais que podem ser construídas tanto em terra, na beira do rio, ou dentro do próprio rio, as chamadas casas flutuantes. As que ficam perto de cidades, construídas com longas pernas, para se ficar acima do nível do rio, são chamadas de palafitas.
O Curumim ficou muito feliz e emocionado! Abraçou a
mãe dizendo que os botos queriam encantá-lo e transformá-lo em boto também. Ela
ralhou com ele e falou que iria era lhe dar uma surra para acabar com essa estória
de boto! Só vivia falando nisso. Era boto pra cá, era boto pra lá, o dia
inteiro falando de boto! E agora o curumim já estava até sonhando com os bichos... Porém, ficou agarrado com a mãe dele, parecia um bebê, olhava para todos os lados
com medo da botinha aparecer. Mas ela não veio não. Ele ficou feliz de ter
voltado dos sonhos. Levantou e se arrumou para ir à escola... Mas, quando foi pegar os sapatos dele, que estavam debaixo da cama, viu um pratinho de ouro com uma fatia de bolo e muitos
docinhos dentro. Tomou um susto! Arregalou os olhos, pôs à mão no coração, seu
queixo caiu, e saiu correndo desesperado e descalço! E a história acabou assim.
E agora, quem quer ir até à cidade encantada do boto?!
FIM
Epílogo
A botinha percebeu que o curumim não queria mais saber da Cidade Encantada e muito menos dela, por isso depois de ter deixado o pratinho de ouro com bolo e doces debaixo da cama, correu e voltou para o rio, antes que a mãe dele entrasse no quarto, e foi-se embora muito triste...
Segunda História
A
RAINHA DAS ÁGUAS
Brincante do Festival dos Botos de Maraã-Am - Interpretando a personagem da Rainha das Águas.
*Clique no CD e ouça a música da Rainha das águas do Festival dos Botos de Maraã-Am.
A mãe do curumim vivia ralhando com ele. Mas não adiantava era de nada, parecia que queria virar era um peixe, pois só vivia pulando dentro do rio! Quando ela ia lavar as roupas na beira do rio, ele a ajudava a fazer o giral e a carregar a bacia (cheia de roupas sujas), entretanto, vira e mexe, o curumim ia para a beira d’agua sem a permissão dela e pulava n’agua feito um peixe. A mãe sabia que isso não era bom. Ela tinha medo de que os encantados o levassem. Os encantados, quando gostavam de alguém, só sossegavam quando levavam para o reino deles que fica bem lá no fundo do rio... Um dia, a mãe viu o menino de longe, pulando no rio, e sozinho. Aí, gritou pra ele ter cuidado com a “mãe d’agua”. Ele parou um pouco, pois ela nunca tinha falado “naquilo” para ele. Ele não fazia ideia de quem fosse essa tal de “mãe d’agua”. Imaginou que a mãe estivesse falando de uma “parenta” deles.
O RIO TEM SEUS MISTÉRIOS, TEM SUA PRÓPRIA FORMA DE SER. O RIO ALIMENTA TODA A FLORESTA E SEUS HABITANTES. ASSIM TODA A FLORESTA SOBREVIVE.
A mulher perguntou se a água estava boa. Ele disse que sim. Ele pensou que fosse a nova professora que estivesse chegando à comunidade onde moravam. Havia outras crianças pelas redondezas, mas naquele momento, o rio era só dele. Nesses locais as casas ficam umas distantes das outras. As professoras, quando vem da cidade, moram na própria escola. Ele pediu até bênção, e ela lhe deu, pois as professoras costumam ser muito respeitadas pelas crianças nas comunidades do interior. Ela disse para ele não ficar muito tempo por ali, pois naquele horário era perigoso e o banzeiro podia ficar muito forte. Ele riu e disse que gostava era do banzeiro, ficava melhor para se mergulhar. Ele pulou no rio de novo, e quando voltou à tona, a mulher bonita já tinha ido embora...
Há um mundo aquático dentro da floresta. A água é o segundo elemento da floresta, depois das folhas.
Ele pensou que ela tinha voltado para a escola onde achava que ela iria morar. Em casa, ele disse para a mãe que a nova professora tinha chegado à comunidade. A mãe ficou feliz e falou que iria a tarde à escola para conhecê-la. À tarde a mãe foi à escola, e ele já se aproveitou da ausência dela para ir à beira do rio de novo! A Irmã dele, de dez anos apenas, disse para ele ajudar a limpar as louças e vasilhas do almoço, mas ele não quis nem saber. Na cabeça dele, lavar louças e vasilhas, era só para as cunhantãs. O trabalho dele era só pescar e ajudar o pai na lida. Ela lavou tudo sozinha enquanto ele ficava de “bubúia” n’agua. Quando terminou, recolheu tudo na bacia, pôs na cabeça e começou a subir o barranquinho para voltar a casa deles. Ela ainda disse que ele era um “abestado” e que a “mãe d’agua” iria levá-lo. Ele nem ligou para a ofensa, mostrou só a língua pra ela! Mas quando ela falou em "mãe d’agua", de novo, ele se invocou...
Ninguém conhece os segredos reais que as águas do rio escondem. Tanta água em um só lugar deve haver uma explicação!
O pai, nunca tinha falado sobre aquilo, mas a mãe já tinha dito uma vez, agora a irmã dele falou “nisso” novamente. Ele ficou pensando: Quem era essa tal de mãe d’agua?! Achou que fosse uma vizinha velha e chata que iria chegar por ali, só podia ser. Mas não ficou muito preocupado não. Sozinho, na beira do rio, ficou que nem peixe, só flutuando... Na cabecinha dele, de curumim do interior, a vida já havia lhe trazido tudo que queria. Tinha seu pai, suas irmãs e sua mãe a quem ele amava muito. A vida dele era pular no rio e brincar com as águas. Adorava pescar com o pai e trabalhar no pesado, pois para ele, homem que é homem trabalhava só no pesado. Ele ia aprendendo cedo, os conceitos e os pré-conceitos, dos que vivem na beira do rio. Era uma criança, um curumim ainda, mas já pensava como um homem.
Em alguns trechos da Amazônia, o rio se parece com o mar. Por isso já foi chamado de rio Mar. Mas depois recebeu um nome feminino: Amazonas.
No interior as crianças amadurecem mais cedo que na cidade... De repente ela perguntou, lá da margem, se a água estava boa. Ele se virou e disse que estava. Depois disse que a mãe dele foi falar com ela lá na escola. Ela apenas sorriu e disse que já estava na hora boa de sair de dentro da água. Ele falou rindo que só mais tarde sairia. Ela disse que não era bom está ali naquele horário. Ele riu de novo e mergulhou no rio... Na cabeça dele, já era um pequeno homem, e mulher nenhuma iria mandar nele, só sua mãe. Da casa, que ficava lá em cima no barranquinho, a irmã dele ouvia quando ele saltava e caia na água. Ela estava furiosa, pois toda tarefa doméstica sobrava sempre pra ela realizar. E quando a mãe saia para resolver algo por ai, ela virava a “empregada” da casa.
Em nenhum outro lugar, a vida possui esse tom do desafio, de se compreender a linguagem da selva e dos rios. Talvez nem seja para ser compreendida mesmo...
Achava injusto que só porque era uma cunhantã tinha de: limpar, varrer, lavar, cuidar, cozinhar, carregar água do rio, etc. De repente a mãe chega em casa com uma cara de quem foi ludibriada! Pergunta pelo curumim. A irmã se aproveita e enfeita, diz que está desde cedo da tarde na beira do rio. A mãe fala que hoje vai ter “santo baixando no terreiro” (surra da boa no lombo). A menina pergunta pela nova professora, a mãe diz que não chegou nenhuma e, que o curumim, agora dera para mentir! Ao chegar perto da escola, a viu toda fechada, perguntou das comadres ali por perto, disseram que a professora nova só semana que vem. Foi aí que ela ficou braba! Pensou que o curumim fez aquilo para ela sair de casa e deixar o caminho do rio livre, só pra ele, à tarde toda. Pois mãe, quando se encontra com vizinhos, proseia o dia todo. E assim o foi. Pediu para filha ir atrás do caboclinho. A irmã odiou o pedido, mas foi. O prêmio dela seria cada lambada de galho verde de goiabeira, no lombo do moleque. Ele não estava mais na beira do rio. Ela achou que ele voltara para casa. Na beira do rio não estava mais... Voltou já pensando que ouviria os gritos dele na porta de casa. A mãe perguntou por ele de novo. A filha irritada disse que no rio não estava! A mãe achou que foi se esconder no mato.
A Cada dia, vivendo na selva, seus próprios habitantes
aprendem sempre uma nova experiência. A Selva tem vida própria.
Uma hora dessas o curumim apareceria... Um dia depois o desespero tomava conta da mãe, da família, da casa, da comunidade e de toda redondeza. O curumim, bom de braço n’agua, havia ido embora. Ninguém sabia pra onde. Procuraram durante dias, a remo, por todos os lados do rio, nos igarapés, nos lagos das redondezas, e não o acharam. Uns calcularam que foi a cobra-grande, outros a pirarara que o levou. A mãe só sabia da dor e do desconforto que a sufocava no peito. Coração de mãe é infalível. O pai estava desolado, pois seu curumim era como ele: forte, habilidoso e audaz. A irmã não sabia o que pensar, brigavam, mas eram irmãos. A família, de maioria de mulheres, ficou “órfã” do pequeno filho-homem. A mãe pensava, desamparada, com suas emoções e pensamentos apenas, foi ela... A mãe d’agua...
Os cenários dos rios e das florestas, na Amazônia, muitas vezes encantam o imaginário de suas populações. A imponência das águas aguça o imaginário.
O curumim não havia mentido, uma mulher veio até ele na beira do rio sim! Pensou ser a nova professora da comunidade e falou para a mãe... A professora que chegaria à comunidade... A mãe, porém, começou a imaginar que ele não desapareceu, mas foi encantado para o além do reino das águas. A mulher que vira na beira do rio o levou. A Rainha das Águas. Ninguém sabe para onde foi... Por semanas e semanas procuraram por ele, mas nada de se achar nenhum vestígio. Seu pai desceu o rio a remo, foi lá em baixo, e por lá ninguém deu notícia de nada e de ninguém. Ninguém viu nada. Por muito tempo o pai fez isso, subia e descia o rio na esperança de encontrarem o corpo. Além da mãe, o pai também imaginava e sabia o que poderia ter acontecido... A vida do filho não pertencia mais ao mundo das folhas, das águas e dos homens. Ele foi levado para outro lugar. Isso, ele não foi embora, foi levado...
O habitante tradicional das margens dos rios aprende, desde cedo, a respeitar seu cenário de sobrevivência.
Numa manhã de domingo, a mãe acorda bem cedo, antes de todos. Pega algumas coisas que preparou um dia antes, e chega devagar até a beira do rio. Olha pra outra margem distante, muito distante. Vê o sol nascendo no horizonte das águas. Põe a cuia no chão, arruma as flores-do-campo que colhera, põe algumas frutas e, um colar de contas azuis, junto às flores. Ascende à vela e a assenta no meio da cuia, entre as flores coloridas. Faz uma prece solitária, e por fim, entrega às águas suas dores, clemências e saudades... Sente o vento soprar em seus cabelos negros de mãe, olha para a margem, bem perto, e vê uma “coroa” de flores (em vários tons de lilás), bem no lugar onde tinha visto o filho pela última vez dia desses. Enquanto isso o vento vai levando, junto à correnteza, a pequena cuia em oferecimento a memória do seu pequeno curumim...
(Leia a terceira e última história)
Os
Pés do CURUPIRA
FIM
Comentários
Postar um comentário