Os Cenários do Cemitério
Saudades Eternas
Crônicas
Viver é um mistério. Morrer também. Mas entre um e
outro há incontáveis outros mistérios que nem sempre se consegue entender. A
vida é, em síntese, uma caminhada íngreme para morte, a qual nos destrói para
nos salvar. Ela é inerente a todos os seres. Então, por que fugir dela? Ela
virá quando os jardins noturnos florescerem, virá com os eventos da noite.
*Afonso Araújo de Sousa
*referência: Síntese de uma literatura cabocla
amazonense.
A mulher
“Meu Deus do Céu! Ajude-me! Ai meu Senhor, me
dê forças!...” Alguém sofre. A frase ecoa pelos ares do silencioso enterro e
sepulcro, um clima fúnebre. A voz em depressão e desespero é suave, dolorosa e tocante,
vem de uma mulher... São dezessete horas. A mulher não consegue ficar apenas no
derramar de lágrimas, precisa chorar, falar, gritar, comover a si, e comover...
O final da tarde deve ser o mais triste e melancólico de toda uma vida àquela
senhora. Ela toca em seu peito, aperta o próprio seio. Leva as mãos aos cabelos
como se estivesse se autoconsolando. Está desfigurada, sem maquiagem, sem
penteado arrumado, sem a imagem artificial do dia-a-dia, em depressão profunda.
Do canto esquerdo de sua boca escorre um fio de saliva incontida, a do choro
desesperado. Naquele instante algumas noções de higiene são desprezadas. A dor
da perca humana deprime e decompõe o bom senso a qualquer um (que também seja
sensível a morte). O chão some debaixo dos pés, não há quem consiga seguir
etiquetas, modos e não se cometa garfes quando algo de tal elevação assola a
mente. Nesse momento, a própria alma nos ensina que o mundo material e
camuflado, o qual criamos, não nos conquista na dor, jamais. A perca é tamanha
e imensurável.... Alguns dizem que ela precisa se acalmar, mas a deixam chorar
e desesperar-se, também precisa disso. A fala trêmula, o choro já seco e
doloroso, o sol quente de final de tarde... Ela se ajoelha, ou se joga ao chão
perante o sepulcro (agora já concretizado), toca na terra e chora... Na
infância, quando assistia a filmes da paixão de Cristo e lia Bíblias ilustradas
para crianças, sempre me apreendia ao semblante de Nossa Senhora, Maria, mãe de
Jesus, construído e elaborado artisticamente pelos autores das obras. Era
sempre o de uma mulher desfigurada, abatida pela perda do filho. Independente de
ser o filho de Deus, Jesus teve uma mãe terrena que seguiu Seus passos, desde Sua
infância. E no final, está aos pés da cruz. Sofreu como qualquer ser humano
mortal que sofre a uma perda. A imagem de Nossa Senhora das Dores, que em geral
veste roxo, conduzida em procissão na via-sacra, na sexta-feira da paixão da
semana santa, sempre nos mostra toda dor e o sofrimento da mãe que perde o
filho para o mundo. Os artistas conseguem esculpir a “dor da Virgem”, em
lágrimas, rosto desfigurado, mãos sem ter onde tocar e pés que parecem não ter
onde se firmar. É comovente. Depois da descida do corpo de Cristo da cruz, vem à
imagem à mente de “A Pietá”, de Michelangelo. A mulher sentada, sem conforto,
tendo apenas um último instante junto ao corpo de sua cria sagrada, sobre seu
colo materno. Vem à mente, todas essas referências quando vejo a imagem daquela
mulher, bem ali, no final daquela tarde triste de um dia qualquer... A cena é
comovente e toca o coração de qualquer outro ser humano que passe por ali (quase
ninguém). Poucos ao seu redor. Alguns começam a acalmá-la, ela grita, rejeita o
contato dos outros e diz: “Meu Deus, nunca mais vou vê-lo! Era o que eu tinha,
a única e verdadeira coisa que eu tinha...” Me comovo. É uma despedida trágica
a da mulher. Penso que era um filho, pai, ou o marido, pois ela está sendo
consolada por outras mulheres e alguns adolescentes. Só há um homem adulto
próximo, o coveiro, ele espera o “espetáculo da dor” cessar para seu ato final
– o enterro. Sua depressão dolorosa e explícita torna-se uma triste atração
naquele final de tarde, ao meu olhar de piedade humana. Nada posso fazer a não
ser: o silêncio, o olhar, e a consternação... Começa o enterro, a dor da mulher
prossegue. Cada pá de barro que recobre a urna funerária é como se fosse um
novo golpe que recebe no peito, da morte. O coveiro parece ser cruel e
desumano, pois sepulta alguém, uma pessoa, um ser humano... Entretanto apenas
um corpo agora. Ele apenas cumpre sua função social e de trabalhador. O sol
começa a ficar mais calmo, a mulher também. Já não reluta e se deixa ser
reerguida do chão. Fica de pé, depois de joelhos, de novo ao chão, e com as
mãos sujas do barro da cova, pega algumas velas e põe na terra do sepulcro.
Agora parece mais conformada, entretanto ainda chora. Os que a olham começam a
se preocupar com as horas, vai escurecer. Quero continuar a olhar essa cena tão
dramática. Lembro de minha vó materna chorando, da mesma forma, pelo
falecimento de sua filha, minha mãe. Eu pequeno, sem poder fazer nada, nem mesmo
um abraço podendo prestar-lhe. Era pequeno e inerte. E ainda não sabia como
agir numa situação dessas. Não haviam me ensinado. Aliás, ninguém ensina, a
gente exercita o afeto de piedade e compaixão sozinho. Isso tudo hoje em dia é
raro de se aprender. Todos olhavam para minha avó, jogada sobre o cadáver de
minha mãe, dentro do caixão branco, forrado com tecido de morim. Agarrada com
sua cria morta e consumida, derrotada por fulminante mal. A dor estampada no
rosto da minha vó é inesquecível e comovente demais. Começo a chorar pela dor
daquela mulher, que chora, pelo sujeito que nem sei quem é, porém era tocante
vê-la, em dor e depressão... Ela passará semanas e, até meses, desolada.
Totalmente em desalento. Deixará de sentir o sabor da vida, da comida, da
música que mais gosta, do doce, e de tudo que agrada ao ser humano, inclusive a
libido. Até mesmo poderá perder a fé. Poderá pensar em perder a própria vida
também. No entanto, será capaz de reconstruir sua existência, sem a presença
daquele que está ali, agora a jazer. Sepultado.
Virá visitá-lo com flores e velas, e chorará novamente, contudo, haverá menos
furor como hoje. Virá nos dias mais belos, mas sempre serão dias sem cor e
brilho. Virá nos dias mais cinzentos e serão iguais, sem cor e sem brilho
também. Haverá um profundo e imenso vazio em seu coração, que logo passará.
Minha vó materna conseguiu sobrevier dezoito anos após minha mãe falecer.
Suportou a perda da filha, ao todo foram seis perdas, pois pariu nove filhos,
dos quais, apenas três ainda vivem. Seis morreram antes dela. Suportou o vazio
deixado pela ausência de minha mãe, e de mais cinco, de seus nove filhos. E
superou a tudo. As mães conseguem, são muito forte, todavia sofrem mais que
qualquer um de nós. Na ordem biológico-natural, que acreditamos ser o nosso
destino vital, minha mãe é quem sepultaria minha vó, mas isso não funcionou no
caso delas. Minha mãe foi à primeira... Sinto vontade de ir até aquela mulher,
deve ter uns 45 anos, ainda é jovem. Não consigo. Sinto-me sem segurança para
ampará-la. Ela precisa de “uma mão” que consiga levantá-la, que a olhe em seus
olhos e lhe dê o abraço mais confortante, que na vida toda, ainda não o teve.
Precisa da caridade e do conforto humanos. É algo descapitalizado, não se
compra e nem se vende, se doa. É o sentimento que nós, humanos, desenvolvemos
há milhares de anos. Dentro das
cavernas, em noites de frio intenso de inverno, quando nos aconchegávamos a
apaziguar a friúra vinda dos ventos noturnos, fomos aprendendo a reconfortar e
a proteger uns ao outros. Os tempos modernos das tecnologias mil têm
desamparado há muitos de nós. Todos, em grande maioria, prefere a fria tela do
computador, invés do sentir o tato humano, em aconchego e caridade. Nas
montanhas andinas existe um curioso povo, os Chuá. Possuem um particular modo
de entenderem o momento da morte. Quando alguém de sua etnia está para falecer,
convidam todos os parentes, vizinhos, e membros da aldeia, para os últimos
momentos do moribundo. A pessoa ainda viva, sorrir ao ver o aglomerado. As
lágrimas são constantes e o clamor do choro, dos mais chegados, um verdadeiro
desespero. Abraços, toques no rosto, nas mãos, alguns relembram os bons
momentos da vida. Mas o “vale-de-lágrimas” é constante e comovente. Quando o
moribundo ou moribunda se vai, tudo cessa. Todos enxugam as lágrimas e até
sorrisos se vêem. Parece um deboche ou desrespeito ao que se foi, mas não o é.
Os que são de outras culturas e de outros povos, devem se perguntar: “Por que
pararam de chorar agora que o sujeito se foi?” A resposta vem de imediato dos
próprios Chuá, que explicam, com sorriso simpático e sincero: “Choramos nos
últimos momentos de nossos entes queridos para que saibam que o amamos. Chorar
depois não interessa, já se foram, estarão mortos e não verão nosso amor demonstrado.
Choramos antes, para que saiba que o (a) amávamos, acima de qualquer coisa”. Entender
ao outro na sua forma de sofrer é complexo, imensurável, e indelicado se não
souber o que dizer, ao prestar-lhe condolências. Resta dizer apenas que sente
muito, mas quem sente mesmo é quem perde. Por isso, gestos no lugar das expressões,
valem muito mais que qualquer “quilo” ou “cento” de palavras. Um velho amigo
certa vez me confidenciou emocionado. Quando sua mãe faleceu, uma pessoa de seu
convívio de amizades, que nem tinha tanta intimidade com o mesmo, o viu
desabando em lágrimas e sem chão. De repente, lhe pega pela mão, como quem pega
a uma criança, aperta, toca o seu peito; o olha nos olhos com lágrimas e lhe dá
o abraço mais sincero que nunca tinha sentido por toda sua vida. Sente o
conforto, a solidariedade, a confraternização e tudo que tem haver com o
sentimento da compaixão e acalanto humanos. Esse abraço sincero e afetuoso, de
conforto, simula o abraço de qualquer mãe, pós dá luz a um filho. Os bebês
nascem desprotegidos, sem defesas, inertes, desamparados, totalmente
dependentes: do calor, tato, e alimento maternos. Não conseguem sobreviver sem
a presença materna protetora. Da mesma forma retribuiu à
solidariedade. Tornaram-se amigos de vez, estreitaram a relação humana, para
sempre irmãos na compaixão. Coisa rara de se ver no hoje. Tempos depois,
descobriu que aquela pessoa havia perdido a mãe, de forma trágica, num acidente
de trânsito. Aprendeu sozinho a superar a dor e o vazio. Nem todos conseguem.
Nas histórias que se conta sobre Jesus, temos o inusitado choro de Cristo ao
ver Marta e Maria chorando a perda do irmão Lázaro, que era amigo de Jesus.
Jesus chorou. Não apenas pela perda de Lázaro, mas por Marta e Maria, que
quando lhe viram, sentiram o conforto de sua presença divina e humana. Jesus
teve um instante de seu sentimento terreno representado pela comoção, que
qualquer um de nós denota ao sofrimento alheio. Olho para o caminho que as
outras mulheres percorrem, com os adolescentes, junto, a mulher sem chão, já
saindo todos do local do sepultamento. Levam a depressiva senhora, a qual,
inconformada, teima em olhar para trás. Já são quase dezoito horas. Tenho que
ir. O cemitério vai ser fechado em minutos. Antes, faço como a mulher e olho
para trás, para o local onde seu ente foi sepultado. Tudo está acabado mais uma
vez.
Abandonados
Hoje são
trinta de abril de um inverno muito rigoroso. Caminho pelas vielas dos mortos,
o matagal é terrível, muito mais deprimente que os jazigos ali construídos e enegrecidos
pelo tempo. O mato cresce e dificulta o trânsito por entre as sepulturas. Estou
num grande cemitério. Há mais de cento e quinze mil pessoas jazendo nesse
grande lugar, todas abandonadas pelo poder público em sua morada final. Estou
tentando chegar até o cruzeiro para acender velas à memória de meus entes
queridos. Hoje é segunda-feira, e como ensinavam os antigos, deve-se lembrar
dos mortos nesse dia. Choveu muito nas últimas semanas, devo enfrentar: lama,
poças, e mais poças d’agua. O capim está tão alto que tenho dificuldade de ver
o cruzeiro do ângulo que me encontro. Há tanto mato que posso me deparar com
uma cobra a qualquer momento. Junto dessa vegetação desamparada e crescida,
vejo o rastro de outros que por ali passaram e demarcaram sua estadia
momentânea. Resto de embalagens de velas, plásticos, papéis, etc. Já vejo a
cruz, está pintada de branco. O cruzeiro, no centro de um círculo estratégico,
fica distante de todos os túmulos, para que se possa ter um pouco de
privacidade nesse momento de reflexão, e oração aos mortos. Entretanto, percebo
que o local cheira mal, há muitas garrafas de bebida barata, velas em cores e
formatos variados, resto de tanta coisa que nem se pode citar tudo. Esse conjunto todo deve fazer parte de um ritual ou oferendas, feita por seguidores de
determinadas religiões. Religiões censuradas e oprimidas. Nem sempre são os
féis da mesma, mas podem ser também de várias e várias outras que praticam seus
rituais. Acendo minhas velas, rezo um pouco. Paro de rezar, lembro e
relembro... O mato crescido, o lixo de toda natureza e qualidade espalhados. Lama,
poças e poças d’agua, tudo é deprimente, muito mais que os mortos, os quais ali
estão sepultados. Prova mais ainda o descaso do poder público para com os
cidadãos vivos e seus mortos. Afinal morto também é cidadão (No entanto, nosso
país é capitalista, por isso só se serve ao Estado quem está vivo: são e salvo.
Se não se estiver nesses dois quesitos somos então mortos ou excluídos). O
cemitério deveria ser um local que confortasse aos que buscam junto aos jazigos
de seus entes queridos, paz e reflexão espiritual. Mas tudo se encontra em
pleno e total descaso. De longe vejo uma multidão que sepulta alguém. Paro e me
sinto consternado. Não sei se é mulher ou homem, não sei se jovem ou velho. Mas
deve ser pobre, o coitado, senão estaria sendo depositado no cemitério da
frente, que sempre ostenta um gramado bem aparado, flores coloridas e alegres
(de plástico). Até na hora da morte há dessas coisas. De qualquer forma, tomo
pra mim o desamparo dos que sofrem. Percebo que alguns choram, mas a maioria
não. Outros conversam, murmuram, reparam nos detalhes descabidos, menos no
caixão do morto. Alguém diz que pisou num formigueiro, outros se defendem do
mato e da lama. A cova é fechada. Um minuto de silêncio, todos se vão. Ficam
três jovens apenas, desolados, abandonados... Em menos de cinco minutos se vão
também. Fico olhando o local, agora completamente só, em silêncio. Uma grande
coroa de flores amarelas, uma fita com a singular “saudades”. Algumas velas
acesas, outras, já apagadas pela brisa da tarde. Tudo o que restou, seja lá
quem era ou quem foi... Talvez rezem uma missa de sétimo-dia, ou não. Talvez
apareça alguém pra acender novas velas, ou não. Se for muito querido, ou
querida, poderá ganhar um túmulo de tijolos e cruz pintados de azul-celeste, do
contrário, será esquecido, abandonado para sempre. Talvez “perdido”, a dá lugar
a um novo corpo infeliz. Ninguém perde mais tempo com preservação de lugar de
mortos, em cemitérios. Uma vez por ano, talvez, possa aparecer alguém.
Entediado de ficar em casa no dia dos finados, compra uma caixa com oito velas
e vem acender pela simples tradição de se fazer. Sem sentimentos, afeto, ou
amor. Somos abandonados no cemitério. Após a morte não nos restará consolo, nem
mesmo pena. No dia seguinte vão dizer: “a vida continua”. Significa que para
quem morre já era. Com o passar do tempo aos que vivem, o conceito aos que
morrem se transforma. A memória é desprezada, saqueada, roubada, e esquecida.
Se bem que nem se precisa morrer para ser “esquecido”, com o avanço das redes
interativas modernas de comunicação, você se sente morto e esquecido, se não
estiver conectado com o mundo virtual: frio, inerte, e solitário. Bem, dá
impressão de morte. “Frio”, “inerte” e “solitário”, lembra mesmo morbidez, mas
faz parte do mundo moderno dos vivos. Os mortos ficam no passado, jazendo em
suas moradas, abandonados, no meio do mato, feito caipiras, a própria sorte, com
lixo e restos. Completamente abandonados.
O cemitério é
sempre o melhor lugar para se fazer reflexão e meditação, porém, isso na
opinião isolada. “A ocasião faz a razão, não o ladrão”. Os que lá estão
sepultados não o perturbarão. No máximo, só os que se dizem “zelar” pelos túmulos,
que por lá ficam. Poderão lhe incomodar um pouco com sua presença desalinhada e
desgastada. No mais, assim como os que jazem, estará em paz. O cenário não é
depressivo como se imagina. Somente a presença dos que choram por seus mortos é
que lhes podem causar qualquer consternação. Ao se caminhar nas sacras terras é
preciso deixar o tempo correr solto, sem se preocupar com outros compromissos.
O melhor é de manhã cedo, ou no final da tarde. Ao caminhar, se o cemitério for
na sua cidade natal, irá se defrontar
com os que lhe viram em vida, crescer e se tornar quem o é. Ao mesmo tempo
irá perceber que você é mais um a cumprir seu papel mortal. Não pode esquecer
que um dia sua face estará estampada numa foto de lápide, ou num “santinho”, de
missa de sétimo-dia. Se for numa necrópole de outra cidade, onde ninguém sabe
de suas origens, família e história, irá se sentir sozinho... Os que ali
estão, assim como você, muitos outros, sozinhos, estavam. Não lhe apresentarão
qualquer referência de vida, porém e somente, de morte, é claro. Todavia,
saberá que assim como você, também viveram os dilemas de se morar num grande
centro urbano. Todos os padrões que você vive, os que ali jazem também viveram,
mas sem maiores referências sociais. Nas cidades grandes, ao caminhar em seus
cemitérios, você não encontrará sua paz de espírito, não vai reconhecer um
vizinho, um amigo, uma professora, um tio ou qualquer outro que lhe traga
alguma lembrança de outras épocas jazendo ali. O cemitério tem essa função
social. Não é apenas a figura de seus ancestrais sepultados que vai lhe ajudar
a reconstruir tua história e passado, mas os que assistiram a você enquanto
vivos estavam. Esses locais determinam o seu momento vital dentro daquela
sociedade ou comunidade. Enquanto vivo estiver, poderá ostentar, junto à
memória daqueles que já se foram, seu apreço, sua humildade e moral humanas. Sua
paz estará sempre lá, junto dos que jazem. Jazer é verbo pessoal (mas não o
queremos conjugar jamais), obrigatório ao ser humano que cumpri o final de sua
caminhada terrena. É o verbo mais certo a todos. Cedo ou tarde o conjugamos.
Enquanto puder, assista aos que jazem, leve sua energia vital ao local, onde o
pó retornou ao pó, e a mente desfez-se em fluidos. Caminhe sem medo ou
resignação, sem ódio ou discórdia. Lá todos estão mortos e não merecem seu
desprezo. Parentes, amigos, conhecidos são almas eternas que requerem o sentido
maior de lembranças e memórias. Você estará e será o elo final da história de
cada um ao mundo concreto e atual. Depois, alguém fará isso por você, quando
estiver a jazer também. Ao olhar às edificações erigidas como última morada,
aos mortos, perceba, mesmo na morte, as ostentações sociais. Alguns jazem em
mausoléus mais humildes e simples, feitos a tijolos e pintados com tinta a base
d’agua. Túmulo baixo, rente ao chão, com locais suficientes para acender velas
no dia de finados. Crucifixo no alto para se por flores e grinaldas de papel-crepom.
Outros jazem, comodamente, sem infortúnios, em imponentes túmulos de mármore a
granito ou, a cerâmica.
Área interna
e externa, vasos de mármore para depósito de flores naturais, bancos de
alvenaria ou cerâmica, castiçais de prata à privacidade e comodidade dos
visitantes (que quase nunca aprecem) acenderem suas velas. Ninguém tem mais
tempo nem para os vivos, imagine aos mortos... Talvez nem tenha sido a última
vontade do morto, mas os que ficam a velar por seus restos mortais, resolvem
impor sua marca social. Outras vezes, para alguns, não vale mais a pena o
sentido do local e findam por esquecer o que ali foi sepultado. O Estado se
apropria do lugar e o torna público novamente. E novamente será lugar de outro
jazigo. As controvérsias da vida em
torno disso são divergentes, pois a maioria ainda prefere zelar pelo local de
jazigo, pois é um ponto de espera, afinal todos vão jazer um dia. Como ainda
não somos adeptos em massa da cremação, temos o costume de sepultamento e de
apreciação aos locais dos que já se foram. Um dia talvez, com os avanços
sociais, culturais e religiosos, os cemitérios sejam extintos. A cremação será
a coqueluche fúnebre da hora. Quando o homem branco por aqui chegou, já há
alguns séculos, já havia vários e vários cemitérios. Os destruímos, e hoje,
talvez vivamos sobre os jazigos de muitos povos primitivos. Poderá ocorrer o
mesmo com nossa civilização. O futuro fará esses conceitos correntes serem
modificados, e talvez, todos esses caprichos com os jazigos de nossos entes (e
nosso também), poderão perder o valor que hoje ainda os devotamos. Quando
crianças, perdemos amigos, familiares e conhecidos. Quando se morre, o tempo
pára a quem se foi. Por isso ao crescermos os que se foram primeiro sempre
estarão jovens nas fotos fúnebres. Os que já eram adultos têm a certeza da
eterna juventude. Então, somente nós envelhecemos (os vivos), e decaímos fisicamente. Talvez seja uma vantagem morrer jovem. Mas quem quer morrer?! A
morte nos causa temores e incertezas. Enquanto caminhamos por entre as lápides
nos deparamos com as imagens em foto, dos que eternamente estarão em nossas
lembranças: jovens, bonitos, sorridentes, parecendo cheios de vida ainda...
Todavia estão mortos, e nós envelhecendo e, caminhando, no cemitério.
Depressão
Com depressão,
não se sente o calor ou a quentura do sol. Não se repara no que se veste e
muito menos como se estar vestido. Não se atenta a aparência visual, se barba e
cabelos estão bem feitos, ou arrumados, se o rosto está lavado ou não. As
noções básicas de higiene não são páreas a mais profunda das depressões. À noite, o sono não chega, às pálpebras não
descem, não cerram. As horas, ou correm rápidas demais ou parecem que nem
existem. O tempo simplesmente parece parar. Os sabores dos alimentos não nos
seduzem, ou simplesmente o degustamos, ou não! As proteínas, vitaminas ou
qualquer suplemento, contido na comida, não interessam. O transtorno tira a tonicidade
da vida, nada dá forças. As rezas ou orações, na maioria das vezes, perturbam,
pois não conseguem nos unificar ao sagrado como deveria ser. Aliás, não há vontade
do convívio com os outros, não se imagina confraternizar qualquer coisa,
inclusive religião. Por isso, os melhores lugares aos que se sentem
atormentados por esse mal, seriam os isolados e os mais distantes, fechados,
escuros e abandonados. O cemitério é um desses locais. Nem o perigo que se
corre, de se estar num lugar isolado, é percebido por alguém que esteja
sentindo a extrema e profunda amargura do desalento. Em geral, é uma caminhada
que não se chega a lugar algum. Pois uma caminhada sempre prescreve um destino.
A depressão é uma caminhada sem direção, sem acaso certo. Talvez o início da
loucura. Se parece com Alice no país das maravilhas, ao se encontrar o coelho
branco, ela fala que está meio que perdida, e o coelho diz que qualquer caminho
então lhe serve. Quem se perde não tem escolhas. Desenvolve-se um olhar sem
propriedades a serem almejadas, sem intermédios certos, sem qualquer propósito
de luta e de vitória. Se um especialista orienta, é ignorado, se há medicamentos
a ser seguidos, por muitos momentos, institui-se resistências. Terapias e mais
terapias não ocasionam melhoras muitas vezes. As coisas parecem mesmo não
fazerem e nem demonstrarem sentido. Por isso, o choro, é uma válvula de escape.
Entretanto, quando as lágrimas cessam e nem uma gota a mais brota dos olhos, se
consegue ter um momento são... É hora de tentar o retorno.
É madrugada
de abril, está frio. Ele está deitado debaixo de uma grande árvore, num
gramado. Está frio, mas não se importa. Sente o vento da madrugada lhe afligir,
entretanto não tem reação. Está deitado no jardim de uma clínica psiquiátrica à
espera de atendimento, desde as duas da manhã. Não está em crise, pensa que
não, apenas aguarda a vez numa fila de quase cem pessoas para conseguir um mero
diálogo com um dos médicos. Espera conseguir medicamentos para os seus
transtornos. Os comprimidos estão acabando e sabe que precisa de mais, somente
os especialistas podem prescrever. Pensa que dormiu, pois por alguns momentos imaginou que estava em outro lugar. Entretanto apenas se evadiu no pensamento.
Olha para os galhos da árvore e parecem tentáculos que sustentam as folhas. De
repente sente-se como a árvore, cheio de membros, mas incapaz de prosseguir, de
caminhar. Está enraizado. Sente vontade de chorar, sente-se agoniado, acha que
não conseguirá mais caminhar... Pensa que não está sentindo nada, mas sente.
Algo o deixa triste e abalado. Ele olha as outras pessoas que estão ao seu
redor, parecem em estado pior, ou semelhante ao dele. Nada dói, nada arde, nada
lateja. O algo está na mente dele. É algo que incomoda seu próprio senso de
direção vital. Está desconectado da realidade da maioria. Talvez esteja louco,
ou não?! Consegue ver os outros, há os normais acompanhando os que não estão
normais. Está só, ninguém o acompanha, porém não está normal. Na verdade não
quer a companhia de ninguém, não gosta e acha que não precisa. Pensa que se ele
morresse seria melhor, entretanto não sente o sentimento do suicídio. Só não
quer as pessoas perto dele. Principalmente os que falam que Jesus o curará.
Jesus já deu tanto a ele, mas ele não soube retribuir, assim pensa. Não ousou
pedir mais do que tem recebido, seria um abuso. Ele percebe que amanhece, pois
ouve o trânsito de carros na avenida se intensificando. Ouve vozes de muitas
pessoas, algumas próximas dele, outras, somente vultos. Está só, se sente só.
Não quer ninguém perto dele, não gosta, não tolera e não tem mais paciência com
ninguém. As pessoas querem remediar aos outros com suas experiências pessoais e
religiosas, isso não ajuda. Cada um é de um jeito, cada qual é um caso. Um
remédio de um não servirá ao outro. Ou sua dose deve ser maior, por se estar
beirando a loucura ou apenas um calmante pra ti apagar apenas a uma noite de
sono. Hoje ele consegue lembrar-se das coisas daquele dia com mais calma, está
sob controle emocional dos medicamentos que ingeriu... São duas da tarde, o
médico o atendeu e o receitou. Tudo não passou de cinco minutos. Tudo rápido!
Será? Nem sabe se falou direito com o doutor. Só sabe que já está caminhando na
rua, procurando o local para apanhar o ônibus e voltar pra casa, sozinho. Seu companheiro
o havia deixado de madrugada na clínica, e depois teve que ir trabalhar. Ao
atravessar a rua, não sabia como, parecia a ele que os carros não existiam, tudo
estava escuro demais em sua vista, ouvia buzinas, muitas buzinas. Chegou do
outro lado, por milagre. Esperou o ônibus. Passam vários, de vários números:
003, 6400, 2042, 2062, 2021, 3019, 3015, 3201, 3024, 3321, 4444... Ele olha
tudo e se confunde, já tomou um comprimido, e já está sob efeito dos remédios.
Pensa que seu ônibus passou e não percebeu, o perdeu... Chegou na casa dele,
parece de manhã, não sabe mais que horas tem, nem se importa, não tem
compromissos, não tem destino, não tem lugar específico para ir. Caminha até a
porta de casa e entra. Deita e fica a olhar pro teto... É noite, ele abre a
janela, olha as estrelas. Ouve vozes, mas não vê ninguém. Já é de madrugada
novamente, ou noite, é noite, e não há movimento de ninguém pelas ruas. Ouve
cães latindo, talvez um som muito distante chegasse aos ouvidos dele. É uma
música antiga que toca em algum programa de rádio na madrugada ou, de noite,
ele não sabe. Ele está ouvindo, mas não vê ninguém, parece que tem mais alguém
na casa dele, entretanto não vê ninguém, mesmo sentindo uma presença... Fica na
janela por muito tempo, horas e horas, mas não vê ninguém. Olha as luzes distantes,
de outros bairros, e imagina que alguém de lá olhe pro bairro dele também.
Imagina que deva haver outros que são como ele, também... Deita-se, e com o
forte efeito do remédio, consegue fechar os olhos. Suas pálpebras estão
fechadas, porém consegue sentir tudo em sua volta, parece que caminha dormindo,
ou melhor, de olhos fechados. Não comeu, não tomou banho, não sonhou. Abre os
olhos, a janela está aberta, todavia está escuro. Não é noite, mas está tudo
escuro. A sensação de alguém perto dele o assusta. Chove muito, venta muito
também. Não sabe que dia é, nem que horas são. Mas gostou de ver a chuva, ela o
faz se sentir mais calmo. O remédio parece fazer efeito agora. Ele está
começando a ver as coisas com outros olhos, os olhos do sentido vital. Contudo,
a chuva continua caindo, molha dentro da casa, ele resolve fechar a janela.
Parece que o dia vai acabar de novo, pois percebe o poente do sol, pensa ser segunda-feira.
Pega algumas velas, vai ao quintal, reza um pai nosso, três ave-marias e as
acende em memória de seus entes queridos... Na cabeça dele, a lembrança do cemitério, mas
não sabe o qual? Ele começa a ver as coisas de forma normal. A casa dele está
suja, suas roupas abandonadas. O mato voltou a crescer, é inverno. O inverno o
deprime sempre. Na verdade, parece que ele precisa ir a um cemitério para rezar
sozinho, mas sozinho ele já está. Sente que seu amigo e parceiro não têm mais
tanta paciência, por isso nem fala mais com ele sobre certos assuntos. Não lhe
dá mais atenção como deveria. Ele só quer saber de seu mundo cinza. Ele precisa
fugir das vozes e presença que escuta e sente, mas ele não sabe de onde elas
vêm...
Morto
Há dois
minutos sufocou, seu coração parou, não conseguiu mais se mexer, caiu e não teve
mais nenhuma reação vital. Há dois minutos morreu... Está morto agora. Seu
corpo está inerte. Alguém o encontrou e o fez ser conduzido para algum lugar
que não sabe onde é. Morreu em algum lugar, só, por opção. Está agora entregue
às mãos de terceiros. Não sabe o que vai acontecer agora que morreu. De
qualquer modo, não precisa mais se preocupar com o que vai ser feito dele. Como
já está morto não precisa mais se impressionar com as dificuldades da vida.
Neste estado tudo é diferente, não se entende nada a mais... Fica-se um pouco
conturbado, entretanto se sabe o que ocorre com um corpo de alguém morto. Está
sendo posto num local estranho. Seus membros estão sendo manipulados, está
sendo quase que aprisionado em um local pequeno e estreito. “Vê” pessoas o
olhando, não sebe quem são. As vê
falarem, dizem alguma coisa, mas não entende mais sua linguagem, pois está
morto! Sente que estão demonstrando vários semblantes e sentimentos. Não as
reconhece, não sabe quem são. Engraçado, quando se morre não se reconhece mais
ninguém, todos se tornam estranhos. Na TV não era assim, sempre os mortos
reconheciam seus parentes. Percebe alguém cobrindo seu corpo com flores, “sente”
cheiro de parafina de velas. Isso ele reconhece, pois sempre as ascendia aos
mortos que fizeram parte da vida dele. Observa algumas pessoas as quais nunca
viu em vida. Estranha-se tudo nesse estado, vê-se o mundo por um ângulo que
jamais se viu antes. Está à mercê dessas
pessoas. Não poderá fazer mais nada por ele. Sente que algo ocorre, parece que
seu corpo está sendo conduzido de novo, está dentro de algo e, em movimento. Vê
a luz do sol, o sol tem um brilho estranho agora, seu calor não queima mais o
rosto, não sente sua pele suar. De repente a luz do sol some. Está totalmente
guardado dentro de algum lugar: pequeno e estreito. “Percebe” que começa a ser baixado a algum
ambiente, “sente” que o clima em volta é frio e úmido... Começou a “entender”
melhor as coisas. Morreu... Mas só agora consegue recobrar o senso de ser
humano de volta. Ele é uma luz apenas, deve ter passado a algum plano onde se
entende o que se está acontecendo melhor. Está sendo sepultado! Já está num
cemitério que não sabe qual é. Não sabe se é algum que frequentava de vez
enquanto, ou, se é o da infância dele. Nossa! O tempo a quem morre passa
rápido, ou melhor, acaba. O tempo acabou para ele. Isso! O tempo não existe
mais. Quando se morre o tempo para de correr, não se envelhece mais do que já
está. Não precisa se alimentar mais, nem mesmo tomar banho. Não é mais preciso
fazer as coisas de um humano vivo. Está livre! Ele Percebe tudo agora. Já foi
velado, e nesse momento, já está sendo sepultado. Não havia muitas pessoas em seu
enterro, somente os que em vida achava que gostavam dele. Não teve filhos, por
isso não deixou tantas lembranças. Em vida, plantou muitas árvores, escreveu
livros, mas não teve filhos, nem por engano. Teve amores, muitos amores. Nenhum
foi eterno, por isso ninguém chorou por ele de paixão. Não os interessa mais agora.
Isso não importa. Sente que algumas pessoas se consternaram com sua morte,
parecem sinceras. Mas tudo tarde demais. Percebe, somente agora, que não deixou
herança a ninguém, de nada, e nem acumulou bens... O
mundo se torna mínimo quando se morre! Está sepultado agora, debaixo de
toneladas de terra. Todos já se foram e, o deixaram. Sente que suas carnes
começam a ser esmagadas pela terra. Seus ossos ainda suportam o peso, o qual
está esmagando, aos poucos, seu corpo. Sente a terra invadindo o local pequeno,
no qual foi posto, antes de ser enterrado em seu caixão. Acredita que haja
pessoas lá em cima, pois pelo decorrer do tempo humano, terrestre, hoje já deve
ser seu sétimo dia. Ele era cristão católico, por isso a tradição era visitar a
sepultura ao sétimo dia, no falecimento de alguém. Mas seja quem for não precisava
ter vindo, pois já percebe toda sua matéria em putrefação, sendo arrancada dos
ossos, pelos vermes da terra que o cerca agora. É tudo fantástico após a morte.
Enquanto alguns, se recordam dele, que já se foi, é consumido dia após dia pela
terra e pelo tempo, que corre somente aos vivos. Ele deixou de existir, é só
uma lembrança na memória de alguns, e tão logo, nem isso será mais, pois as
pessoas que choram hoje morrerão também um dia. Morrer é complicado, ainda mais
se for com dor, mas depois tudo se modifica. Está livre de tudo e de todos.
Está se transformando numa luz eterna, num espaço diferente. O corpo começa a
se dissipar. Nem seus ossos existem mais, praticamente retornou ao pó (como
previsto e escrito em algum lugar). Por que tudo já vem escrito antes da gente
nascer? É para isso quê se precisa aprender a ler e a escrever em vida? A matéria foi
devorada pelos vermes que vivem transitando no subsolo da terra. Está sumindo,
não há mais quase nada dele no mundo. Morrer é um mistério brilhante, se pensa
que a vida é para sempre, nem a morte é. Não se fica um fio de cabelo pra se
contar a história. A natureza satura tudo. Não interessa se foi bom ou mau,
egoísta, ou fraterno. Na morte, isso não pesa nem mede. Agora tudo acabou pra
ele. Pois morreu. Já se passou muito tempo da morte dele, não vem ninguém
mais ao seu túmulo. Ficou só, eternamente, eternamente só. Até na morte “se
sente” solidão. É só um fio de luz agora...
Enterro de Anjo
O cortejo
fúnebre passa pelo meio da rua calçada de tijolos aparentes. A tampa do caixão
era levada por uma quinta pessoa como se fosse necessário conduzir o corpo à amostra,
a fim de que todos os vizinhos e passantes o olhassem. Estava adornado de
flores amarelas, o caixão era de tábuas de assoalho, forrado com morim branco
(um tecido muito barato). Era um cortejo de poucas pessoas, talvez apenas
familiares do morto, ou “anjo”. Era o corpo de uma criança de uns quatro anos
de idade, arrumado com roupas brancas, ou “mortalha”. Anjo ou anjinho era como
se referiam aos corpos infantis vestidos na mortalha. No final da rua estava o
cemitério à espera do cortejo. A morte sempre é um acontecimento particular,
familiar e pessoal. É algo que machuca e deprime várias pessoas de uma mesma
família. A morte pode ser de qualquer membro, mas não importa a dor, apesar de
imensurável, é desprezada por outros. Entretanto tem-se necessidade de se mostrar
o morto aos outros que rodeiam a comunidade ou o local onde se viva. Os mais
cruéis ainda podem dizer nesse momento à dor do próximo: “O mundo não vai parar
pra você só por que alguém da tua família morreu...” A mãe do anjo ia
caminhando logo atrás do caixãozinho, amparada por outras mulheres. Não havia
homens adultos no cortejo, apenas meninos e meninas, crianças. Antigamente era
assim, se uma criança morria, convidavam outras a enterrá-la. Vez por outra,
batiam na porta de casa, convidando minhas irmãs mais velhas para o enterro de
alguma criança que houvesse morrido pelo bairro. Pudera, meus pais tiveram
muitos filhos. Ficava desesperado, tinha receio que me chamassem, não gostava
de seguir os cortejos fúnebres. Quando menino, tinha medo (pânico) de ter
pesadelos à noite com o falecido. Imaginava que viria me buscar, puxar meus pés
ou simplesmente falar comigo. Agora, não fazia idéia do porquê somente a mim,
já que havia tantas crianças pelo bairro. Certo dia, minha irmã mais velha “de
todas” (pois eram cinco), foi chamada para segurar a alça do caixão de um
anjinho. Nunca me esqueço dela ajudando a conduzir o caixãozinho do morto.
Quando morria um adulto, só os adultos iriam ao funeral. O cortejo, da casa do
morto ao cemitério, era também chamado de “enterro”. Toda vez que passava um cortejo
fúnebre, pela frente de casa, pensava: “Lá vai um enterro”. Aquilo me intrigava
e me deixava aterrorizado. Ao mesmo tempo me causava curiosidade, algo
biológico. Pra mim era um “espetáculo” ver um corpo, arrumado dentro de um
caixão, rumo ao sepultamento. Aquele sujeito imóvel, inerte, sendo conduzido
pelas mãos de outros, me dava uma grande aflição no coração e na alma. Tinha medo
de morrer. Muito medo mesmo! Dificilmente participava de um velório, muito
menos, de um enterro. No entanto, quando ia ao cemitério para prestar
homenagens aos finados, ou simplesmente, visitar a cova no sétimo dia de algum
falecido, meu psicológico ficava em estado de grande apreensão. Eu sentia certo
prazer de ali está. Um prazer de compaixão, nada de perversidade (Deus me livre!).
Era um algo que se materializava provocado pelos convites que se ouvia na rádio
local ou, “voz comunitária”.
Antigamente, nas cidades pequenas, quando alguém morria, saia na rádio ou na “Voz”
a divulgação do convite, para o povo ir ao enterro. “Voz” era o nome que a
gente dava ao “boca-de-ferro, ou alto-falante comunitário”. E, no final do
comunicado, dizia-se sempre: “... desde já agradecemos a quem comparecer a esse
ato de fé e piedade cristã”. De certa
forma, havia um tom de exagero nessas palavras. Parecia que era uma necessidade
de se deprimir aos outros também. Assim como ouvia de minha avó materna, que
quando passasse um enterro em frente de casa tínhamos que ir ao terreiro, pegar
um punhado de terra e atirar atrás do cortejo. Significava que, mesmo não indo
ao sepultamento, “ajudaríamos”, de forma espiritual, a se enterrar aquele
corpo. Seria uma forma muito cômoda de não participar, fisicamente, do ato.
Todavia, na consciência, estaríamos colaborando com o “ato de fé e piedade”. Minha avó materna costumava me levar ao
cemitério para acendermos velas aos entes falecidos, ou a outros conhecidos.
Tudo tinha um ritual. Íamos sempre no final da tarde, pois assim, o sol já
estava mais “frio” (melhor dizer, se pondo). Logo aprendi na escola que se o
sol esfriasse o mundo acabava. Tínhamos que tomar banho na volta e na ida ao
cemitério, como uma espécie de “purificação”. Levávamos água, fósforos, velas e
até uma pequena faca de cozinha para se cavar a terra, caso estivesse muito
dura. Não se falava muito, apenas tínhamos que “rezar”. Minha avó sempre
chorava. Tudo fazia parte do ritual. Dáva-se uma volta pelas redondezas, para
se verificar, se novos corpos haviam sido enterrados por ali. Após alguns
minutos, voltávamos às velas, a fim de conferir se não as tinham apagadas. Após
o tempo empreendido aquilo tudo, tínhamos que ir embora, já havíamos cumprido
nosso papel de bons cristãos. Em casa, ficava imaginando aquele lugar, meio que
sem ninguém, apenas os mortos enterrados. Tinha a impressão de que havia uma
obrigação da parte da gente com aqueles finados lá depositados (ou sentia
sempre a presença invisível de alguém). Assim nos ensinavam a guardar a memória
dos falecidos. Como morávamos, praticamente na rua do cemitério, todos os dias,
nos finais de tarde, olhava para o local, da janela de casa, parecia que sempre
algo ali me atraía, não sei dizer o “quê”. No meu tempo de menino no interior,
o mundo vivia sua “plenitude ingênua”. Criança não morria de “bala perdida”,
violência cometida por adultos isanos, por vícios de drogas, ou todas essas
coisas modernas que se fundou para ceifar vidas ainda na Infância. Tudo era
coisa que ocorria apenas em cidades grandes, do sul ou sudeste do país e na
capital do meu Estado... Mas o mundo cresceu, e eu também. As mazelas
adquiriram novas e modernas denominações. Os vícios e seduções mundanos
adentraram a infância, de forma horrenda e aterradora. As doenças, que matavam
meus pequenos vizinhos, eram chamadas de “doença-de-criança”, ou qualquer nome
popular, inventado pra se justificar o desaparecimento dos mesmos por esse ou
aquele mal. Hoje, até de doenças oportunistas, devido até AIDS, as crianças
morrem... Imaginar que em criança tinha o maior pavor, de ver outra da
vizinhança morta, dentro de um humilde caixão, era um dos algos que me causava
estado de puro desespero e pânico. Presentemente as crianças morrem muito mais
que antes, de causas inimagináveis à minha mente infantil da época, dos anos
setenta e oitenta, no século XX. Os papéis se inverteram tanto que, atualmente,
se tem medo das crianças vivas, pois muitas delas são capazes de tirar nossas
vidas a qualquer momento. Num sinal de trânsito qualquer, ou num assalto a um
coletivo, em qualquer hora do dia e até mesmo da noite. O menino que olhava da
janela da sala de casa, em puro pânico, ao ver os “enterros”, conduzidos pelas
ruas de sua infância, despertou em mim, ou talvez, nem tenha morrido, e me fez
escrever essa crônica fúnebre sobre os “anjos mortos”.
O Herói
Na infância, possuía
uma relação de temor e admiração para com o cemitério. Na cidade só havia um, e
único. Por isso, de forma física, o local era o singular exemplo que compunha o
conceito desse cenário, em minha mente infantil. Até minha primeira vez de se
viajar e ir morar em outra cidade, o cemitério da minha infância era o conceito
fundamental, prático e único, de sepultamento humano. Quando as primeiras
televisões começaram a adentrar em nossas casas, no século passado, foi então
que comecei a ver outros moldes desse local, os quais me inquietavam a alma.
Observava, através dos raros programas, como mostravam ou figuravam cemitérios
na mídia. Lembro de um capítulo do famoso seriado: o “Bem Amado”, exibido num
dos canais de TV, que se tinha como alternativa a se “apreciar” a tela. Era um
absurdo, a mim, com valores totalmente arraigados ao meu mundo infantil, àquela época, observar uma cena dramática de TV, realizada dentro de um
cemitério. Pensava: “A televisão não respeita o cemitério”. Pra mim era também
um lugar sagrado, de tristezas, rezas e saudades. Um dia meu pai comprou uma
revista em quadrinhos, do Batman. Trazia a origem do herói depressivo. Pra quem
não sabe, o Batman é um herói dos quadrinhos, cheio de inquietações e
transtornos emocionais. Quando criança, Batman assistiu a seus pais serem
executados a tiros por um bandido, num beco escuro. Tudo se passou na fictícia
cidade de Gothancity (na verdade, Nova Iorque). Nos quadrinhos que lia, Batman
saía de sua mansão, todo encapuzado, após andar por toda noite, como sempre o
fazia, e também, a caçar o marginal que matara seus pais. Ia ao cemitério de
madrugada para ver o túmulo dos mesmos. O cenário me fascinava. Tudo feito em
traços góticos, não lembro o nome do cartunista. Mas os traços me arrebatavam,
pois o cenário do cemitério era muito semelhante, a muitos túmulos que via no
de minha cidade. Anjos esculpidos em mármore, de asas abertas, cruzes grandes e
negras, lápides arredondadas na parte superior, umas com e outras, sem cruzes.
Aliás, demorei um tanto e meio para descobrir por que algumas tumbas, que via
em minha infância, não tinham cruzes e nem se acendiam velas nas mesmas. Eram
pessoas de outros países que não seguiam a mesma religião que a maioria de nós seguia.
Pensei que fossem “crentes”, mas meu pai me disse que eram “mulçumanos”. Então,
foi o suficiente, para que eu respeitasse para sempre o modo de religião e
crença dos outros e ponto final. Entretanto, até se descobrir isso, aprendi,
através de minha avó materna que: “eram pessoas que não rezavam quando vivas,
por isso foram desprezadas após a morte. Sentia até pena desses, porém, só
depois que descobri do que se tratava, de verdade, respeitei o ensino que minha
avó materna pôde receber e nos repassar... Voltando ao cemitério dos
quadrinhos, do Batman, me envolvia mais e mais por aqueles traços, de forma
mórbida e curiosa. O Batman ali representado chorava de joelhos, diante do
túmulo de seus pais. Falava-lhes, entretanto, não obtinha resposta. Como ia a noite, ou madrugada ao cemitério, não ia como o homem que o era. Ia de indumentária de herói. A expressão
posta pelo desenhista em sua face me comovia também. Era um Batman muito
humano, diferente dos heróis que atiram laser pelas pontas dos dedos ou mãos,
tem visão de raios-X, super força, e outros poderes especiais. Não levava
flores, nem acendia velas. Logo entendi que o Batman tinha uma religião
diferente da minha, mas que se emocionava como eu, por seus entes queridos.
Sem falar
também, que o Batman, ou homem-morcego, usava capa e máscara de cores escuras:
cinza, preto, e azul-marinho. Depois que tudo passava, e sua súplica terminava,
o herói saia caminhando pelo plano do cemitério. Era um terreno raso, sem
relevos, amplo, e com um bem cuidado gramado. O desenho, como numa fotografia
aérea, mostrava o herói em uma visão de cima pra baixo, cabisbaixo, caminhando
entre as centenas de túmulos. Um campo mórbido. Por muito tempo, ao ler e reler
aquela história triste daquele herói, chorava sozinho e sentia medo de perder
meus pais também. O herói dos quadrinhos me apresentava um hábito que já haviam
me ensinado desde cedo: sempre visitar o “lugar-dos-mortos”. O tempo passou,
perdi a revista em quadrinhos, por muitos anos deixei de ir ao cemitério.
Alguns anos se passaram, e eu sem visitar o local onde meus entes estavam.
Depois que minha mãe foi sepultada ali, perdi o entusiasmo humano de ir até lá.
Um cemitério não precisava de um herói vivo, só lhe prestam valor se morto
estiver. Batman era um herói solitário, vingador, triste e inquieto. Mas nunca
a grande maioria de seus fãs percebeu ou percebe isso.
O Sorriso
Era um túmulo
enegrecido pelo tempo e épocas. Era de mármore, como a maioria dos antigos e
históricos túmulos de nossos cemitérios. Estava localizado nos fundos da
necrópole, longe de todos, digo, das quadras mais próximas ao cruzeiro central.
O cruzeiro sempre se apresentava com muitos resíduos de ceras antigas e recentes,
e de outras coisas postas por ali. Sinais de rituais de outros cultos
religiosos. Havia muitos copos descartáveis com água, garrafas de bebida
barata, flores, fitas coloridas. Uma “mistura” de crenças e religiões. O túmulo não possuía vestígios de visitas
recentes. Não havia flores e nem velas. Na verdade há muitos anos não se
acendia uma única vela naquele mausoléu, visto que, não havia nenhuma marca, ou
detrito, de cera ou parafina. Datava das
primeiras décadas do século XX (1900 e alguma coisa...). Naquele tempo, as pessoas mais recatadas
construíam belos túmulos, com banco e tudo, para se passar mais horas junto do
local onde seus entes queridos jaziam. Muito diferente do tempo de hoje. Mostrava
uma foto de uma moça, jovem e bonita. Talvez seus 21 anos. De que poderia ter
morrido? Havia dia, mês e ano de nascimento e falecimento. O tradicional “Eternas
saudades” de seus familiares estampava a pedra de mármore. Mas como de costume,
não havia o porquê daquela moça morta. Nunca dizemos do que morreu nossos
mortos. Diz-se que se têm saudades, mas pouco se vai ao cemitério, apenas nos
dias dos finados, de novembro, se assiste o povo lotar esses locais. Ninguém
sente saudade de morto, mais da pessoa que foi em vida, isso sim. Geralmente
por convenções, talvez, não se grava no mausoléu do que se faleceu aquele ou
aquela, que ali jaz. Se pudéssemos dizer do que faleceram, poderíamos ajudar a
muitos que morreriam do mesmo mal, ou de acidente, principalmente de trânsito.
Mas segue-se a ética social em não se divulgar o motivo, ou causa maior, do
óbito do sujeito. É uma forma de se preservar sua memória apenas entre os
familiares e conhecidos próximos. Assim, o falecimento de alguém se torna
apenas problema dos que vão sepultá-lo. Quando em vida, somos donos de nosso
próprio nariz, mas ao perder a energia vital, nosso corpo pertence a nossa
família, ou aos que conosco conviviam. São eles que darão o adeus e fim ao que
restar de nós. Como era aos que perdiam
um ente querido, antes da invenção da fotografia, e não se podia estampar na
lápide uma ilustração do rosto do morto?! Os escultores daquele tempo poderiam
esculpir, em mármore ou pedra, as feições do (a) falecido (a); os pintores,
pintar sobre tela os traços fisionômicos. Enfim, cada época direciona e
direcionou o que se fazer quanto a isso. Mas a foto da moça chamava a atenção por
ela sorrir. Quem possa ter escolhido aquela foto, para fixar no mausoléu, quis
eternizar o sorriso dela. O olhar na verdade é que despertava o magnetismo ao
sorriso, pois a moça sorria apenas com os lábios, sem os olhos. Era um sorriso
estampado, de forma artificial, não passava à verdade da felicidade ou da
alegria que se pudesse estar sentindo na ocasião, e no tempo, que foi feita a
foto. Ou ainda, no tempo em que aquela moça vivia. Seu olhar era cerrado,
parecia que não tinha brilho, mas o sorriso era muito bem elaborado e estampado.
Era amplo, alguns dentes à mostra, entretanto um sorriso esquisito e
disfarçado. Chamava a atenção pela força que invocava no olhar de quem pudesse
notá-lo. Já fazia cem anos, ou talvez mais de cem anos! Na foto, a moça já
estava morta! Todavia alguém a pôs a sorrir, e assim, realizou o retrato ( herança da era vitoriana.
Puseram algo em sua boca, ou lhe impuseram, através de outro artifício, o
movimento mórbido de um sorriso enrijecido no rosto, ou apenas nos lábios, já
que não sorria com os olhos. Alguns podem dizer que seria coisa do “demônio”.
Quando a gente rir, de verdade, e em vida, os olhos acompanham o movimento dos
músculos do rosto, sorrindo por inteiro. Os cabelos pretos pareciam bem
penteados. Não parecia está maquiada. A foto era de quase cem anos atrás, ou
mais... Mostrava apenas os ombros e a cabeça, se percebia que a moça estava
deitada mesmo, e morta! Talvez nunca tenha tirado um retrato em vida. Tudo isso
fazia parte, na verdade, dos costumes de outras épocas onde se faziam retratos
de pessoas mortas, para se guardar de lembrança. Pois como era um ato caro e
dispendioso, as pessoas pagavam somente após a morte do parente, e assim
retratá-lo e ficar com a lembrança do sujeito, nem que fosse já morto. Agora,
esse hábito, está fora de uso. Os tempos são outros e totalmente diferentes
daquela época. Quem sabe, “pós-morta”, teve esse prazer final, sem poder
gozá-lo é claro, em vida? Será que foi sepultada sorrindo? Será que teve algum
colapso e morreu daquele jeito? De rir?! Na foto, parecia morta mesmo. Mas só
quem olhasse com cuidado perceberia. As fotos são postas nas lápides, para que
sempre nos lembremos da fisionomia daquele ente querido, o qual se foi. A
fotografia foi inventada nos meados do século XIX, deveria ser artigo de luxo
até poder se popularizar. A moça do sorriso, quiçá não vivesse o suficiente,
para conseguir ostentar a própria imagem na parede da sala de sua casa. Ou,
quem sabe, ainda, por não possuir nenhuma foto, sua família resolveu
prestar-lhe aquela homenagem final, a que sempre pudesse ser vista e admirada
pelo sorriso que ostentava em vida. Mas uma pessoa morta, sorrindo, pendurada
na parede de uma casa?! Estampando um forçado sorriso?!... De qualquer forma, a
foto chamou a atenção naquele dia “cinzento” e quente. O quê poderia ter levado a família a se
construir aquele sorriso, no rosto de uma pessoa morta, ou ainda, por que teria
ocorrido aquela idéia macabra?! E será que outras pessoas já tinham percebido
aquilo tão macabro ali? Os mortos parecem mais mortos nas fotos que nos túmulos
sepultados. Se os vemos nas fotos, é por que ali estão. Quando não os vemos nas
fotos, teremos dúvidas se estão ali mesmo.
Sábado Bento
Numa manhã de
um sábado qualquer no cemitério. Devia ser umas seis horas, era cedo mesmo.
Começou a caminhar e a rever os locais e túmulos de sempre. Tudo igual.
Entretanto, com sua presença, sentia que os mortos se confortavam,
principalmente, os que não recebiam mais a visita de nenhum familiar. Não
entendia o porquê de sua satisfação ao se fazer aquilo. Não era algo que o
fazia sorrir, ou simplesmente chorar. Era um ato cristão de conforto mútuo. O
cruzeiro era o local de maior familiaridade da necrópole. Sempre parecia ser
muito visitado. Normalmente as pessoas que vão ao cruzeiro, não possuem
parentes sepultados naquele local, lá prestam suas homenagens póstumas aos que
já se foram, seus entes queridos. Há sempre flores, velas e outros objetos que
se distorcem do cenário de homenagens aos mortos. O cruzeiro é a representação
do crucifixo de Cristo Jesus. Geralmente são em locais isolados do cemitério,
para que se possa vê-los de longe. Para se ascender as velas que se leva, é
preciso se por praticamente de joelhos. É preciso se prostrar aos mortos ao serem lembrados
diante dos cruzeiros. Fica estampada nesse ato a promessa da salvação eterna,
como a de Cristo, que prometeu ao ladrão Dimas, naquele mesmo dia de crucificação, estar com
Ele no Paraíso. Era sexta-feira. Dimas era o nome do ladrão, condenado à morte,
junto a outro criminoso. Ambos crucificados, um de cada lado de Jesus. Mas no
final, apenas Dimas se arrepende de seus mau-feitos e é arrebatado pelo perdão
de Deus. Rezam as lendas antigas do mundo, que quando José e Maria, e o menino
Jesus, fugiam do rei Herodes pelo deserto, foram cercados por ladrões, o que
era muito comum naqueles tempos, pois os desertos são sempre locais
traiçoeiros. O casal explicou aos bandidos que precisavam fugir, senão teriam o
bebê morto pelo rei. Um dos ladrões seria Dimas, ainda jovem, que olhando ao
menininho, lembrou-se de sua própria mãe. Os deixou ir para que a criança se
livrasse da morte. Tudo isso surge no cenário dos cruzeiros (ou cruz) onde Jesus
teria dado seus últimos suspiros pela humanidade. Às vezes se encontra nesses
locais, certos objetos, espécies de oferendas que mexem com a imaginação e
nos fazem compor diversas idéias. São garrafas de bebidas, copos com água
(morto não toma água, mas Jesus sentiu sede na cruz), fitas de santos de
procissão, papéis com alguma coisa escrita, velas de cores diferentes e, de
formatos estranhos. Uma senhora de idade, que estava acendendo velas e
depositando água nos copos, disse que era para os mortos que não puderam beber
mais água em vida. No entanto, se confunde o ato com oferendas de ritos a
outras religiões, que também se utilizam dos espaços dos cemitérios as suas
celebrações, as quais não são entendidas por uma grande maioria. Mas se deve
respeito aos mesmos. O ato de se depositar água aos pés da cruz, constitui um
simbolismo cristão, pertinente à piedade humana. Ainda há os que, comumente, acendem velas aos
mortos. São pessoas que seguem o que os antigos pregavam. O cruzeiro tem essa
função neutra. Não era palco só de homenagens aos mortos, mas de rituais
sagrados a outras crenças. Isso nunca desacatou ao credo, fé, ou moral social.
O espaço é público e democrático, não se pode descaracterizar a fé alheia. O
respeito a todos, num cemitério, é um dos primordiais e maiores, dos acordos
sociais, pois ali, não se determina quem deva ou não ser sepultado, e ainda,
quem pode se adentrar ou simplesmente quem pode caminhar pelas ruelas do
local. Todas as crenças, religiões e outros mais, podem ser sepultados lado a
lado sem haver adversidade social. Assim é a sociedade lá fora. Numa mesma rua
há: uma igreja católica, um, ou mais templos evangélicos, um terreiro umbandista
ou qualquer outra forma de religiosidade. São assim os cemitérios também.
Vivemos num meio igualitário, mesmo tendo diversidade social de crenças, tão
diversificadas, pelo povo. A necrópole tem esse conjunto refletido em sua
disposição pluralizada de sepultamento, aos membros dessa mesma ordem social,
mas pluralizada nas crenças. Ninguém pode ser impedido de se usufruir dos
espaços do mesmo. Após se absorver estes conceitos sociais, de crenças tão
diversas, se continua a observar mais ainda essa distinção que se mostra nos
mausoléus dos finados, de outras partes do mundo. De modo algum se impede o
sepultamento de estrangeiros em terras estrangeiras. É tudo um ato de apelo
cristão, e de fé. Somente os nazistas já foram impedidos de serem enterrados em
certos locais do mundo, por sua crueldade nos campos de concentração a vários
povos e pessoas, principalmente contra judeus. São japoneses, portugueses,
espanhóis, gente do mundo todo...
De repente
alguém chama. Era uma voz idosa de quem parecia ser muito carente. Perguntou se
ele estava bem, disse que em parte sim. Não o percebeu direito. Mas resolveu
olhá-lo. Nunca havia visto aquela pequena figura. Um senhor de mais de oitenta
anos começou a trocar algumas idéias com ele. Deu-lhe toda atenção,
principalmente ao dizer que, era um sujeito honrado, por doar um tanto de seu
tempo aos que não mais vivem. Pensou até certo ponto está falando com um
fantasma de alguém, uma alma penada, que vagava por ali. O ouviu, agradeceu
pela boa fé, pela palavra e conversas reconfortantes. Queria falar algo
importante, mas ele relutava em não saber. Parecia um enviado a socorrê-lo.
Imaginou que iria lhe pedir dinheiro, mas não o pediu como pensou. O ouviu um
pouco, pois sabe que os idosos são carentes da presença dos mais jovens,
precisam repassar seus conhecimentos, afinal podem morrer e levar tudo consigo.
Talvez, quando encontram alguém em que possam confiar e trocar suas
experiências de vida, procuram aproveitar. Devia o ver assim o idoso senhor,
naquele dia de manhã de sábado. Tanto é que já havia se passado mais de meia
hora de conversa. Até que, subitamente, foram surpreendidos pela aproximação de
um carro que ia devagar à direção deles. Ficou assustado, pois teme os vivos.
Parou. De dentro, saiu um senhor, uma moça jovem e uma senhora, com um bebê nos
braços. Começaram um diálogo com o idoso, pediram desculpas pela interrupção da
conversa deles. Prontamente o idoso começou a dialogar com eles, ele se afastou
aos poucos e foi entendendo o que acontecia. Despediu-se. O tal senhor, que
conversava com ele desde cedo, era um rezador (curandeiro) e costumava atender
as pessoas nas dependências do cemitério. Achou surpreendente, que estes
indivíduos, ainda existam e sobrevivam ao mundo moderno. Não era alma penada,
nem fantasma, era um “pajé”. Aquelas pessoas do carro haviam trazido o bebê para
ser benzido por algum problema de saúde pelo o qual passava. Continuou o caminho dele,
já era hora de ir. De longe observou a cena da bênção ao bebê e aos seus pais.
Foi embora e nunca mais viu o tal idoso. O cemitério começava a se revelar para
ele como um local, de diversas práticas de religiosidade, não apenas local
fúnebre de tristezas e despedidas. Ele ainda devia aprender muito com o que
aparenta determinada função, mas é tomado como construção a um cenário de
várias e variadas formas à vida. Será que a verdade da ida dele a esse lugar
seria para aprender a se conhecer melhor, ou simplesmente e meramente,
relembrar dos que já se foram?
Saudades Eternas
“Saudades Eternas”... É a frase mais popular que se ver impressa em praticamente todas as lápides que se encontra sobre os túmulos nos cemitérios. Mas a curiosidade nos toma, à medida que se percebe os cemitérios sempre vazios. De quem são as saudades? Dos que ficam, ou dos que se vão? Mas se há saudade é por que se sente falta de alguém. No caso dos cemitérios, onde só há os restos mortais dos que jazem, seriam as de quem se fica. Entretanto, por que se marca essas palavras no túmulo dos que morrem, se com o tempo a grande massa dos que ficam se esquece dos que se foram? A impressão é de que se pretende passar à sociedade o grande afeto que se tinha aos que se foram. Mas a priori, fica só nessa impressão. De qualquer modo, sentimento é sentimento, não se pode mensurar o de ninguém. Haverá sempre um motivo para se estar nesses locais, pois se vive entre pessoas, e pessoas morrem. Os bons cristãos devem sempre atender aos apelos dos mais velhos e acompanhá-los em suas idas ritualísticas ao local macabro. Pelas antigas tradições, se deve tomar banho e se vestir com uma roupa digna do local. Não se precisa por perfumes no corpo, não se deve usar roupas coloridas, mas as que forem de acordo com o psicológico mortal. Não se pode correr, falar alto, e muito menos palavrões. Deve-se agir como um pequeno adulto. Assim era o comportamento ensinado às crianças, em outras épocas, quando levadas ao lugar. Havia um quê, muito simbólico, de interpretação da imagem para se compor o cenário de saudades em tempos remotos. Enfim, se deveria apresentar um fio de depressão pessoal (que se diga a era vitoriana). Um silêncio de pesar era imposto até se chegar aos portões do lugar. Caminhava-se pelos caminhos apertados entre os túmulos, e finalmente o destino final. Havia sempre um olhar de caridade e profunda tristeza nos adultos. Não se podia perguntar ou falar nada, a não ser, que perguntassem e comentassem algo, que necessitasse das palavras das crianças como resposta. Vez por outra, se ouvia os resmungos, reclamando dos que vieram acender velas e não as puseram no lugar certo. Manchava-se a cerâmica, posta a se dá melhor aparência, ao local. Após isso tudo, se acendiam as velas e rezava-se o tradicional pai-nosso e as três ave-marias. Os adultos choravam um pouco, os pequenos espiavam em silêncio. Estavam dessa forma, os orientando de como se agir naquele local triste. Mas muitos imaginavam, que aquela pessoa ali sepultada, era tão alegre em vida, por que lembrar-se do sujeito sempre com lágrimas? Se deveria lembrar-se de suas atitudes engraçadas e bem-humoradas também. Outras vezes já se devia fazer um silêncio especial aos que não estavam enterrados ali, mas eram da família. Via-se nesse momento de devoção, mais dores, pois as lápides não podiam ser acessadas para se acender velas e sequer depositar flores. Nesse momento todos ficavam tristes. Eram pessoas que nunca haviam visto. Suas histórias pertenciam aos adultos da família apenas. Normalmente, ia-se ao final da tarde ao cemitério, pois era sempre a melhor hora de se refletir. Antigamente quando não havia TV, se ouvia no rádio uma prece junto à oração da “ave-maria”, era a prece das dezoito horas. Era lindo ouvir aquilo. Ao cair da noite estava terminada aquela etapa. Nessa época, se valia a pena dizer que o escrito na lápide do morto correspondia aos atos dos vivos. Talvez, a ocorrência da frase tradicional, fosse mais exercida em épocas muito remotas. Em nosso moderno momento, as pessoas estão cada vez mais competitivas umas com as outras, nem lembram mais de seus mortos como em outras épocas. Escrevem “saudades eternas” (por lema ou moda) e eternamente se esquece de ir ao local a celebrar a memória dos que já se foram. Certa vez, algumas pessoas conversavam dentro de um cemitério, à procura do local onde haviam sepultado um parente, não conseguiram o encontrar mais, digo, o local. Perderam a terra. No lugar, já havia o sepulcro de outra pessoa com velas, flores, cruz e tudo o mais. Para não se perder a viagem, resolveram acender as velas pelas laterais do local. Os cemitérios de hoje se parecem verdadeiras cidades. São amplos e extensos. As pessoas tem morrido mais, muitos mais que no passado. Principalmente nos grandes centros urbanos onde a violência tem só crescido. Ninguém pode ser culpado desses lápsos para com os que já se foram. O mundo tem nos feito assim mesmo. A expressão popular do “saudades...” caberá somente ao morto, pois este, se tivesse ainda como sentir a ausência, dos que o enterraram, poderia ter sim muitas saudades de suas presenças físicas e espirituais. Diferentemente dos vivos que sentem sua ausência. Com tantos avanços tecnológicos nas comunicações, as pessoas preferem se ver apenas pela fria tela do computador e se falarem pelos aplicativos de celular (superando o péssimo serviço), invés do contato físico. Devido esses novos hábitos as pessoas estão cada vez mais se afastando, fisicamente, umas das outras. Assim, quando alguém morre, é mais prático e cômodo enviar fotos de flores, mensagens com desenhos de anjos rezando, e orações inspiradas na Bíblia a se comparecer pessoalmente, e de forma real. Isso fará que as futuras gerações desapeguem-se desses momentos tradicionais, cada vez mais e mais. A forma de se enaltecer os valores que restam, aos entes pessoais, está se extinguindo. Até a frase emblemática das “saudades eternas” poderá ficar em desuso. A vida, está cada vez menos desvalorizada, em contra partida o mercado funerário está cada vez mais em alta.
Grande Eros, sempre surpreendendo. Parabéns pelo trabalho, meu amigo. Muito legal. Adorei também as fotografias que ilustram a matéria. Sucesso, meu amigo. Grande abraço.
ResponderExcluirÉ Paulo Maués, Eros, não consegui ativar a identificação. Abração.
ExcluirObrigado caríssimo! Já faz um bom tempo que as escrevi. Foi no mesmo tempo que conheci seu canal no YouTube que havia feito esse blog. Eu também não sei como ativa a identificação, ainda. Obrigado.
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