Os Cenários do Cemitério

 


 Necrópole

 

Saudades Eternas



Crônicas

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Viver é um mistério. Morrer também. Mas entre um e outro há incontáveis outros mistérios que nem sempre se consegue entender. A vida é, em síntese, uma caminhada íngreme para morte, a qual nos destrói para nos salvar. Ela é inerente a todos os seres. Então, por que fugir dela? Ela virá quando os jardins noturnos florescerem, virá com os eventos da noite.

*Afonso Araújo de Sousa

 

 

 

 

 

*referência: Síntese de uma literatura cabocla amazonense.

 

 

 




A mulher







 “Meu Deus do Céu! Ajude-me! Ai meu Senhor, me dê forças!...” Alguém sofre. A frase ecoa pelos ares do silencioso enterro e sepulcro, um clima fúnebre. A voz em depressão e desespero é suave, dolorosa e tocante, vem de uma mulher... São dezessete horas. A mulher não consegue ficar apenas no derramar de lágrimas, precisa chorar, falar, gritar, comover a si, e comover... O final da tarde deve ser o mais triste e melancólico de toda uma vida àquela senhora. Ela toca em seu peito, aperta o próprio seio. Leva as mãos aos cabelos como se estivesse se autoconsolando. Está desfigurada, sem maquiagem, sem penteado arrumado, sem a imagem artificial do dia-a-dia, em depressão profunda. Do canto esquerdo de sua boca escorre um fio de saliva incontida, a do choro desesperado. Naquele instante algumas noções de higiene são desprezadas. A dor da perca humana deprime e decompõe o bom senso a qualquer um (que também seja sensível a morte). O chão some debaixo dos pés, não há quem consiga seguir etiquetas, modos e não se cometa garfes quando algo de tal elevação assola a mente. Nesse momento, a própria alma nos ensina que o mundo material e camuflado, o qual criamos, não nos conquista na dor, jamais. A perca é tamanha e imensurável.... Alguns dizem que ela precisa se acalmar, mas a deixam chorar e desesperar-se, também precisa disso. A fala trêmula, o choro já seco e doloroso, o sol quente de final de tarde... Ela se ajoelha, ou se joga ao chão perante o sepulcro (agora já concretizado), toca na terra e chora... Na infância, quando assistia a filmes da paixão de Cristo e lia Bíblias ilustradas para crianças, sempre me apreendia ao semblante de Nossa Senhora, Maria, mãe de Jesus, construído e elaborado artisticamente pelos autores das obras. Era sempre o de uma mulher desfigurada, abatida pela perda do filho. Independente de ser o filho de Deus, Jesus teve uma mãe terrena que seguiu Seus passos, desde Sua infância. E no final, está aos pés da cruz. Sofreu como qualquer ser humano mortal que sofre a uma perda. A imagem de Nossa Senhora das Dores, que em geral veste roxo, conduzida em procissão na via-sacra, na sexta-feira da paixão da semana santa, sempre nos mostra toda dor e o sofrimento da mãe que perde o filho para o mundo. Os artistas conseguem esculpir a “dor da Virgem”, em lágrimas, rosto desfigurado, mãos sem ter onde tocar e pés que parecem não ter onde se firmar. É comovente. Depois da descida do corpo de Cristo da cruz, vem à imagem à mente de “A Pietá”, de Michelangelo. A mulher sentada, sem conforto, tendo apenas um último instante junto ao corpo de sua cria sagrada, sobre seu colo materno. Vem à mente, todas essas referências quando vejo a imagem daquela mulher, bem ali, no final daquela tarde triste de um dia qualquer... A cena é comovente e toca o coração de qualquer outro ser humano que passe por ali (quase ninguém). Poucos ao seu redor. Alguns começam a acalmá-la, ela grita, rejeita o contato dos outros e diz: “Meu Deus, nunca mais vou vê-lo! Era o que eu tinha, a única e verdadeira coisa que eu tinha...” Me comovo. É uma despedida trágica a da mulher. Penso que era um filho, pai, ou o marido, pois ela está sendo consolada por outras mulheres e alguns adolescentes. Só há um homem adulto próximo, o coveiro, ele espera o “espetáculo da dor” cessar para seu ato final – o enterro. Sua depressão dolorosa e explícita torna-se uma triste atração naquele final de tarde, ao meu olhar de piedade humana. Nada posso fazer a não ser: o silêncio, o olhar, e a consternação... Começa o enterro, a dor da mulher prossegue. Cada pá de barro que recobre a urna funerária é como se fosse um novo golpe que recebe no peito, da morte. O coveiro parece ser cruel e desumano, pois sepulta alguém, uma pessoa, um ser humano... Entretanto apenas um corpo agora. Ele apenas cumpre sua função social e de trabalhador. O sol começa a ficar mais calmo, a mulher também. Já não reluta e se deixa ser reerguida do chão. Fica de pé, depois de joelhos, de novo ao chão, e com as mãos sujas do barro da cova, pega algumas velas e põe na terra do sepulcro. Agora parece mais conformada, entretanto ainda chora. Os que a olham começam a se preocupar com as horas, vai escurecer. Quero continuar a olhar essa cena tão dramática. Lembro de minha vó materna chorando, da mesma forma, pelo falecimento de sua filha, minha mãe. Eu pequeno, sem poder fazer nada, nem mesmo um abraço podendo prestar-lhe. Era pequeno e inerte. E ainda não sabia como agir numa situação dessas. Não haviam me ensinado. Aliás, ninguém ensina, a gente exercita o afeto de piedade e compaixão sozinho. Isso tudo hoje em dia é raro de se aprender. Todos olhavam para minha avó, jogada sobre o cadáver de minha mãe, dentro do caixão branco, forrado com tecido de morim. Agarrada com sua cria morta e consumida, derrotada por fulminante mal. A dor estampada no rosto da minha vó é inesquecível e comovente demais. Começo a chorar pela dor daquela mulher, que chora, pelo sujeito que nem sei quem é, porém era tocante vê-la, em dor e depressão... Ela passará semanas e, até meses, desolada. Totalmente em desalento. Deixará de sentir o sabor da vida, da comida, da música que mais gosta, do doce, e de tudo que agrada ao ser humano, inclusive a libido. Até mesmo poderá perder a fé. Poderá pensar em perder a própria vida também. No entanto, será capaz de reconstruir sua existência, sem a presença daquele que está ali, agora a jazer.  Sepultado. Virá visitá-lo com flores e velas, e chorará novamente, contudo, haverá menos furor como hoje. Virá nos dias mais belos, mas sempre serão dias sem cor e brilho. Virá nos dias mais cinzentos e serão iguais, sem cor e sem brilho também. Haverá um profundo e imenso vazio em seu coração, que logo passará. Minha vó materna conseguiu sobrevier dezoito anos após minha mãe falecer. Suportou a perda da filha, ao todo foram seis perdas, pois pariu nove filhos, dos quais, apenas três ainda vivem. Seis morreram antes dela. Suportou o vazio deixado pela ausência de minha mãe, e de mais cinco, de seus nove filhos. E superou a tudo. As mães conseguem, são muito forte, todavia sofrem mais que qualquer um de nós. Na ordem biológico-natural, que acreditamos ser o nosso destino vital, minha mãe é quem sepultaria minha vó, mas isso não funcionou no caso delas. Minha mãe foi à primeira... Sinto vontade de ir até aquela mulher, deve ter uns 45 anos, ainda é jovem. Não consigo. Sinto-me sem segurança para ampará-la. Ela precisa de “uma mão” que consiga levantá-la, que a olhe em seus olhos e lhe dê o abraço mais confortante, que na vida toda, ainda não o teve. Precisa da caridade e do conforto humanos. É algo descapitalizado, não se compra e nem se vende, se doa. É o sentimento que nós, humanos, desenvolvemos há milhares de anos.  Dentro das cavernas, em noites de frio intenso de inverno, quando nos aconchegávamos a apaziguar a friúra vinda dos ventos noturnos, fomos aprendendo a reconfortar e a proteger uns ao outros. Os tempos modernos das tecnologias mil têm desamparado há muitos de nós. Todos, em grande maioria, prefere a fria tela do computador, invés do sentir o tato humano, em aconchego e caridade. Nas montanhas andinas existe um curioso povo, os Chuá. Possuem um particular modo de entenderem o momento da morte. Quando alguém de sua etnia está para falecer, convidam todos os parentes, vizinhos, e membros da aldeia, para os últimos momentos do moribundo. A pessoa ainda viva, sorrir ao ver o aglomerado. As lágrimas são constantes e o clamor do choro, dos mais chegados, um verdadeiro desespero. Abraços, toques no rosto, nas mãos, alguns relembram os bons momentos da vida. Mas o “vale-de-lágrimas” é constante e comovente. Quando o moribundo ou moribunda se vai, tudo cessa. Todos enxugam as lágrimas e até sorrisos se vêem. Parece um deboche ou desrespeito ao que se foi, mas não o é. Os que são de outras culturas e de outros povos, devem se perguntar: “Por que pararam de chorar agora que o sujeito se foi?” A resposta vem de imediato dos próprios Chuá, que explicam, com sorriso simpático e sincero: “Choramos nos últimos momentos de nossos entes queridos para que saibam que o amamos. Chorar depois não interessa, já se foram, estarão mortos e não verão nosso amor demonstrado. Choramos antes, para que saiba que o (a) amávamos, acima de qualquer coisa”. Entender ao outro na sua forma de sofrer é complexo, imensurável, e indelicado se não souber o que dizer, ao prestar-lhe condolências. Resta dizer apenas que sente muito, mas quem sente mesmo é quem perde. Por isso, gestos no lugar das expressões, valem muito mais que qualquer “quilo” ou “cento” de palavras. Um velho amigo certa vez me confidenciou emocionado. Quando sua mãe faleceu, uma pessoa de seu convívio de amizades, que nem tinha tanta intimidade com o mesmo, o viu desabando em lágrimas e sem chão. De repente, lhe pega pela mão, como quem pega a uma criança, aperta, toca o seu peito; o olha nos olhos com lágrimas e lhe dá o abraço mais sincero que nunca tinha sentido por toda sua vida. Sente o conforto, a solidariedade, a confraternização e tudo que tem haver com o sentimento da compaixão e acalanto humanos. Esse abraço sincero e afetuoso, de conforto, simula o abraço de qualquer mãe, pós dá luz a um filho. Os bebês nascem desprotegidos, sem defesas, inertes, desamparados, totalmente dependentes: do calor, tato, e alimento maternos. Não conseguem sobreviver sem a presença materna protetora. Da mesma forma retribuiu à solidariedade. Tornaram-se amigos de vez, estreitaram a relação humana, para sempre irmãos na compaixão. Coisa rara de se ver no hoje. Tempos depois, descobriu que aquela pessoa havia perdido a mãe, de forma trágica, num acidente de trânsito. Aprendeu sozinho a superar a dor e o vazio. Nem todos conseguem. Nas histórias que se conta sobre Jesus, temos o inusitado choro de Cristo ao ver Marta e Maria chorando a perda do irmão Lázaro, que era amigo de Jesus. Jesus chorou. Não apenas pela perda de Lázaro, mas por Marta e Maria, que quando lhe viram, sentiram o conforto de sua presença divina e humana. Jesus teve um instante de seu sentimento terreno representado pela comoção, que qualquer um de nós denota ao sofrimento alheio. Olho para o caminho que as outras mulheres percorrem, com os adolescentes, junto, a mulher sem chão, já saindo todos do local do sepultamento. Levam a depressiva senhora, a qual, inconformada, teima em olhar para trás. Já são quase dezoito horas. Tenho que ir. O cemitério vai ser fechado em minutos. Antes, faço como a mulher e olho para trás, para o local onde seu ente foi sepultado. Tudo está acabado mais uma vez.

 

 



Abandonados







Hoje são trinta de abril de um inverno muito rigoroso. Caminho pelas vielas dos mortos, o matagal é terrível, muito mais deprimente que os jazigos ali construídos e enegrecidos pelo tempo. O mato cresce e dificulta o trânsito por entre as sepulturas. Estou num grande cemitério. Há mais de cento e quinze mil pessoas jazendo nesse grande lugar, todas abandonadas pelo poder público em sua morada final. Estou tentando chegar até o cruzeiro para acender velas à memória de meus entes queridos. Hoje é segunda-feira, e como ensinavam os antigos, deve-se lembrar dos mortos nesse dia. Choveu muito nas últimas semanas, devo enfrentar: lama, poças, e mais poças d’agua. O capim está tão alto que tenho dificuldade de ver o cruzeiro do ângulo que me encontro. Há tanto mato que posso me deparar com uma cobra a qualquer momento. Junto dessa vegetação desamparada e crescida, vejo o rastro de outros que por ali passaram e demarcaram sua estadia momentânea. Resto de embalagens de velas, plásticos, papéis, etc. Já vejo a cruz, está pintada de branco. O cruzeiro, no centro de um círculo estratégico, fica distante de todos os túmulos, para que se possa ter um pouco de privacidade nesse momento de reflexão, e oração aos mortos. Entretanto, percebo que o local cheira mal, há muitas garrafas de bebida barata, velas em cores e formatos variados, resto de tanta coisa que nem se pode citar tudo. Esse conjunto todo deve fazer parte de um ritual ou oferendas, feita por seguidores de determinadas religiões. Religiões censuradas e oprimidas. Nem sempre são os féis da mesma, mas podem ser também de várias e várias outras que praticam seus rituais. Acendo minhas velas, rezo um pouco. Paro de rezar, lembro e relembro... O mato crescido, o lixo de toda natureza e qualidade espalhados. Lama, poças e poças d’agua, tudo é deprimente, muito mais que os mortos, os quais ali estão sepultados. Prova mais ainda o descaso do poder público para com os cidadãos vivos e seus mortos. Afinal morto também é cidadão (No entanto, nosso país é capitalista, por isso só se serve ao Estado quem está vivo: são e salvo. Se não se estiver nesses dois quesitos somos então mortos ou excluídos). O cemitério deveria ser um local que confortasse aos que buscam junto aos jazigos de seus entes queridos, paz e reflexão espiritual. Mas tudo se encontra em pleno e total descaso. De longe vejo uma multidão que sepulta alguém. Paro e me sinto consternado. Não sei se é mulher ou homem, não sei se jovem ou velho. Mas deve ser pobre, o coitado, senão estaria sendo depositado no cemitério da frente, que sempre ostenta um gramado bem aparado, flores coloridas e alegres (de plástico). Até na hora da morte há dessas coisas. De qualquer forma, tomo pra mim o desamparo dos que sofrem. Percebo que alguns choram, mas a maioria não. Outros conversam, murmuram, reparam nos detalhes descabidos, menos no caixão do morto. Alguém diz que pisou num formigueiro, outros se defendem do mato e da lama. A cova é fechada. Um minuto de silêncio, todos se vão. Ficam três jovens apenas, desolados, abandonados... Em menos de cinco minutos se vão também. Fico olhando o local, agora completamente só, em silêncio. Uma grande coroa de flores amarelas, uma fita com a singular “saudades”. Algumas velas acesas, outras, já apagadas pela brisa da tarde. Tudo o que restou, seja lá quem era ou quem foi... Talvez rezem uma missa de sétimo-dia, ou não. Talvez apareça alguém pra acender novas velas, ou não. Se for muito querido, ou querida, poderá ganhar um túmulo de tijolos e cruz pintados de azul-celeste, do contrário, será esquecido, abandonado para sempre. Talvez “perdido”, a dá lugar a um novo corpo infeliz. Ninguém perde mais tempo com preservação de lugar de mortos, em cemitérios. Uma vez por ano, talvez, possa aparecer alguém. Entediado de ficar em casa no dia dos finados, compra uma caixa com oito velas e vem acender pela simples tradição de se fazer. Sem sentimentos, afeto, ou amor. Somos abandonados no cemitério. Após a morte não nos restará consolo, nem mesmo pena. No dia seguinte vão dizer: “a vida continua”. Significa que para quem morre já era. Com o passar do tempo aos que vivem, o conceito aos que morrem se transforma. A memória é desprezada, saqueada, roubada, e esquecida. Se bem que nem se precisa morrer para ser “esquecido”, com o avanço das redes interativas modernas de comunicação, você se sente morto e esquecido, se não estiver conectado com o mundo virtual: frio, inerte, e solitário. Bem, dá impressão de morte. “Frio”, “inerte” e “solitário”, lembra mesmo morbidez, mas faz parte do mundo moderno dos vivos. Os mortos ficam no passado, jazendo em suas moradas, abandonados, no meio do mato, feito caipiras, a própria sorte, com lixo e restos. Completamente abandonados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Caminhando...







O cemitério é sempre o melhor lugar para se fazer reflexão e meditação, porém, isso na opinião isolada. “A ocasião faz a razão, não o ladrão”. Os que lá estão sepultados não o perturbarão. No máximo, só os que se dizem “zelar” pelos túmulos, que por lá ficam. Poderão lhe incomodar um pouco com sua presença desalinhada e desgastada. No mais, assim como os que jazem, estará em paz. O cenário não é depressivo como se imagina. Somente a presença dos que choram por seus mortos é que lhes podem causar qualquer consternação. Ao se caminhar nas sacras terras é preciso deixar o tempo correr solto, sem se preocupar com outros compromissos. O melhor é de manhã cedo, ou no final da tarde. Ao caminhar, se o cemitério for na sua cidade natal, irá se defrontar  com os que lhe viram em vida, crescer e se tornar quem o é. Ao mesmo tempo irá perceber que você é mais um a cumprir seu papel mortal. Não pode esquecer que um dia sua face estará estampada numa foto de lápide, ou num “santinho”, de missa de sétimo-dia. Se for numa necrópole de outra cidade, onde ninguém sabe de suas origens, família e história, irá se sentir sozinho... Os que ali estão, assim como você, muitos outros, sozinhos, estavam. Não lhe apresentarão qualquer referência de vida, porém e somente, de morte, é claro. Todavia, saberá que assim como você, também viveram os dilemas de se morar num grande centro urbano. Todos os padrões que você vive, os que ali jazem também viveram, mas sem maiores referências sociais. Nas cidades grandes, ao caminhar em seus cemitérios, você não encontrará sua paz de espírito, não vai reconhecer um vizinho, um amigo, uma professora, um tio ou qualquer outro que lhe traga alguma lembrança de outras épocas jazendo ali. O cemitério tem essa função social. Não é apenas a figura de seus ancestrais sepultados que vai lhe ajudar a reconstruir tua história e passado, mas os que assistiram a você enquanto vivos estavam. Esses locais determinam o seu momento vital dentro daquela sociedade ou comunidade. Enquanto vivo estiver, poderá ostentar, junto à memória daqueles que já se foram, seu apreço, sua humildade e moral humanas. Sua paz estará sempre lá, junto dos que jazem. Jazer é verbo pessoal (mas não o queremos conjugar jamais), obrigatório ao ser humano que cumpri o final de sua caminhada terrena. É o verbo mais certo a todos. Cedo ou tarde o conjugamos. Enquanto puder, assista aos que jazem, leve sua energia vital ao local, onde o pó retornou ao pó, e a mente desfez-se em fluidos. Caminhe sem medo ou resignação, sem ódio ou discórdia. Lá todos estão mortos e não merecem seu desprezo. Parentes, amigos, conhecidos são almas eternas que requerem o sentido maior de lembranças e memórias. Você estará e será o elo final da história de cada um ao mundo concreto e atual. Depois, alguém fará isso por você, quando estiver a jazer também. Ao olhar às edificações erigidas como última morada, aos mortos, perceba, mesmo na morte, as ostentações sociais. Alguns jazem em mausoléus mais humildes e simples, feitos a tijolos e pintados com tinta a base d’agua. Túmulo baixo, rente ao chão, com locais suficientes para acender velas no dia de finados. Crucifixo no alto para se por flores e grinaldas de papel-crepom. Outros jazem, comodamente, sem infortúnios, em imponentes túmulos de mármore a granito ou, a cerâmica.

Área interna e externa, vasos de mármore para depósito de flores naturais, bancos de alvenaria ou cerâmica, castiçais de prata à privacidade e comodidade dos visitantes (que quase nunca aprecem) acenderem suas velas. Ninguém tem mais tempo nem para os vivos, imagine aos mortos... Talvez nem tenha sido a última vontade do morto, mas os que ficam a velar por seus restos mortais, resolvem impor sua marca social. Outras vezes, para alguns, não vale mais a pena o sentido do local e findam por esquecer o que ali foi sepultado. O Estado se apropria do lugar e o torna público novamente. E novamente será lugar de outro jazigo.  As controvérsias da vida em torno disso são divergentes, pois a maioria ainda prefere zelar pelo local de jazigo, pois é um ponto de espera, afinal todos vão jazer um dia. Como ainda não somos adeptos em massa da cremação, temos o costume de sepultamento e de apreciação aos locais dos que já se foram. Um dia talvez, com os avanços sociais, culturais e religiosos, os cemitérios sejam extintos. A cremação será a coqueluche fúnebre da hora. Quando o homem branco por aqui chegou, já há alguns séculos, já havia vários e vários cemitérios. Os destruímos, e hoje, talvez vivamos sobre os jazigos de muitos povos primitivos. Poderá ocorrer o mesmo com nossa civilização. O futuro fará esses conceitos correntes serem modificados, e talvez, todos esses caprichos com os jazigos de nossos entes (e nosso também), poderão perder o valor que hoje ainda os devotamos. Quando crianças, perdemos amigos, familiares e conhecidos. Quando se morre, o tempo pára a quem se foi. Por isso ao crescermos os que se foram primeiro sempre estarão jovens nas fotos fúnebres. Os que já eram adultos têm a certeza da eterna juventude. Então, somente nós envelhecemos (os vivos), e decaímos fisicamente. Talvez seja uma vantagem morrer jovem. Mas quem quer morrer?! A morte nos causa temores e incertezas. Enquanto caminhamos por entre as lápides nos deparamos com as imagens em foto, dos que eternamente estarão em nossas lembranças: jovens, bonitos, sorridentes, parecendo cheios de vida ainda... Todavia estão mortos, e nós envelhecendo e, caminhando, no cemitério.


 



Depressão







Com depressão, não se sente o calor ou a quentura do sol. Não se repara no que se veste e muito menos como se estar vestido. Não se atenta a aparência visual, se barba e cabelos estão bem feitos, ou arrumados, se o rosto está lavado ou não. As noções básicas de higiene não são páreas a mais profunda das depressões.  À noite, o sono não chega, às pálpebras não descem, não cerram. As horas, ou correm rápidas demais ou parecem que nem existem. O tempo simplesmente parece parar. Os sabores dos alimentos não nos seduzem, ou simplesmente o degustamos, ou não! As proteínas, vitaminas ou qualquer suplemento, contido na comida, não interessam. O transtorno tira a tonicidade da vida, nada dá forças. As rezas ou orações, na maioria das vezes, perturbam, pois não conseguem nos unificar ao sagrado como deveria ser. Aliás, não há vontade do convívio com os outros, não se imagina confraternizar qualquer coisa, inclusive religião. Por isso, os melhores lugares aos que se sentem atormentados por esse mal, seriam os isolados e os mais distantes, fechados, escuros e abandonados. O cemitério é um desses locais. Nem o perigo que se corre, de se estar num lugar isolado, é percebido por alguém que esteja sentindo a extrema e profunda amargura do desalento. Em geral, é uma caminhada que não se chega a lugar algum. Pois uma caminhada sempre prescreve um destino. A depressão é uma caminhada sem direção, sem acaso certo. Talvez o início da loucura. Se parece com Alice no país das maravilhas, ao se encontrar o coelho branco, ela fala que está meio que perdida, e o coelho diz que qualquer caminho então lhe serve. Quem se perde não tem escolhas. Desenvolve-se um olhar sem propriedades a serem almejadas, sem intermédios certos, sem qualquer propósito de luta e de vitória. Se um especialista orienta, é ignorado, se há medicamentos a ser seguidos, por muitos momentos, institui-se resistências. Terapias e mais terapias não ocasionam melhoras muitas vezes. As coisas parecem mesmo não fazerem e nem demonstrarem sentido. Por isso, o choro, é uma válvula de escape. Entretanto, quando as lágrimas cessam e nem uma gota a mais brota dos olhos, se consegue ter um momento são... É hora de tentar o retorno.

É madrugada de abril, está frio. Ele está deitado debaixo de uma grande árvore, num gramado. Está frio, mas não se importa. Sente o vento da madrugada lhe afligir, entretanto não tem reação. Está deitado no jardim de uma clínica psiquiátrica à espera de atendimento, desde as duas da manhã. Não está em crise, pensa que não, apenas aguarda a vez numa fila de quase cem pessoas para conseguir um mero diálogo com um dos médicos. Espera conseguir medicamentos para os seus transtornos. Os comprimidos estão acabando e sabe que precisa de mais, somente os especialistas podem prescrever. Pensa que dormiu, pois por alguns momentos imaginou que estava em outro lugar. Entretanto apenas se evadiu no pensamento. Olha para os galhos da árvore e parecem tentáculos que sustentam as folhas. De repente sente-se como a árvore, cheio de membros, mas incapaz de prosseguir, de caminhar. Está enraizado. Sente vontade de chorar, sente-se agoniado, acha que não conseguirá mais caminhar... Pensa que não está sentindo nada, mas sente. Algo o deixa triste e abalado. Ele olha as outras pessoas que estão ao seu redor, parecem em estado pior, ou semelhante ao dele. Nada dói, nada arde, nada lateja. O algo está na mente dele. É algo que incomoda seu próprio senso de direção vital. Está desconectado da realidade da maioria. Talvez esteja louco, ou não?! Consegue ver os outros, há os normais acompanhando os que não estão normais. Está só, ninguém o acompanha, porém não está normal. Na verdade não quer a companhia de ninguém, não gosta e acha que não precisa. Pensa que se ele morresse seria melhor, entretanto não sente o sentimento do suicídio. Só não quer as pessoas perto dele. Principalmente os que falam que Jesus o curará. Jesus já deu tanto a ele, mas ele não soube retribuir, assim pensa. Não ousou pedir mais do que tem recebido, seria um abuso. Ele percebe que amanhece, pois ouve o trânsito de carros na avenida se intensificando. Ouve vozes de muitas pessoas, algumas próximas dele, outras, somente vultos. Está só, se sente só. Não quer ninguém perto dele, não gosta, não tolera e não tem mais paciência com ninguém. As pessoas querem remediar aos outros com suas experiências pessoais e religiosas, isso não ajuda. Cada um é de um jeito, cada qual é um caso. Um remédio de um não servirá ao outro. Ou sua dose deve ser maior, por se estar beirando a loucura ou apenas um calmante pra ti apagar apenas a uma noite de sono. Hoje ele consegue lembrar-se das coisas daquele dia com mais calma, está sob controle emocional dos medicamentos que ingeriu... São duas da tarde, o médico o atendeu e o receitou. Tudo não passou de cinco minutos. Tudo rápido! Será? Nem sabe se falou direito com o doutor. Só sabe que já está caminhando na rua, procurando o local para apanhar o ônibus e voltar pra casa, sozinho. Seu companheiro o havia deixado de madrugada na clínica, e depois teve que ir trabalhar. Ao atravessar a rua, não sabia como, parecia a ele que os carros não existiam, tudo estava escuro demais em sua vista, ouvia buzinas, muitas buzinas. Chegou do outro lado, por milagre. Esperou o ônibus. Passam vários, de vários números: 003, 6400, 2042, 2062, 2021, 3019, 3015, 3201, 3024, 3321, 4444... Ele olha tudo e se confunde, já tomou um comprimido, e já está sob efeito dos remédios. Pensa que seu ônibus passou e não percebeu, o perdeu... Chegou na casa dele, parece de manhã, não sabe mais que horas tem, nem se importa, não tem compromissos, não tem destino, não tem lugar específico para ir. Caminha até a porta de casa e entra. Deita e fica a olhar pro teto... É noite, ele abre a janela, olha as estrelas. Ouve vozes, mas não vê ninguém. Já é de madrugada novamente, ou noite, é noite, e não há movimento de ninguém pelas ruas. Ouve cães latindo, talvez um som muito distante chegasse aos ouvidos dele. É uma música antiga que toca em algum programa de rádio na madrugada ou, de noite, ele não sabe. Ele está ouvindo, mas não vê ninguém, parece que tem mais alguém na casa dele, entretanto não vê ninguém, mesmo sentindo uma presença... Fica na janela por muito tempo, horas e horas, mas não vê ninguém. Olha as luzes distantes, de outros bairros, e imagina que alguém de lá olhe pro bairro dele também. Imagina que deva haver outros que são como ele, também... Deita-se, e com o forte efeito do remédio, consegue fechar os olhos. Suas pálpebras estão fechadas, porém consegue sentir tudo em sua volta, parece que caminha dormindo, ou melhor, de olhos fechados. Não comeu, não tomou banho, não sonhou. Abre os olhos, a janela está aberta, todavia está escuro. Não é noite, mas está tudo escuro. A sensação de alguém perto dele o assusta. Chove muito, venta muito também. Não sabe que dia é, nem que horas são. Mas gostou de ver a chuva, ela o faz se sentir mais calmo. O remédio parece fazer efeito agora. Ele está começando a ver as coisas com outros olhos, os olhos do sentido vital. Contudo, a chuva continua caindo, molha dentro da casa, ele resolve fechar a janela. Parece que o dia vai acabar de novo, pois percebe o poente do sol, pensa ser segunda-feira. Pega algumas velas, vai ao quintal, reza um pai nosso, três ave-marias e as acende em memória de seus entes queridos...  Na cabeça dele, a lembrança do cemitério, mas não sabe o qual? Ele começa a ver as coisas de forma normal. A casa dele está suja, suas roupas abandonadas. O mato voltou a crescer, é inverno. O inverno o deprime sempre. Na verdade, parece que ele precisa ir a um cemitério para rezar sozinho, mas sozinho ele já está. Sente que seu amigo e parceiro não têm mais tanta paciência, por isso nem fala mais com ele sobre certos assuntos. Não lhe dá mais atenção como deveria. Ele só quer saber de seu mundo cinza. Ele precisa fugir das vozes e presença que escuta e sente, mas ele não sabe de onde elas vêm...

 

 

 


Morto







Há dois minutos sufocou, seu coração parou, não conseguiu mais se mexer, caiu e não teve mais nenhuma reação vital. Há dois minutos morreu... Está morto agora. Seu corpo está inerte. Alguém o encontrou e o fez ser conduzido para algum lugar que não sabe onde é. Morreu em algum lugar, só, por opção. Está agora entregue às mãos de terceiros. Não sabe o que vai acontecer agora que morreu. De qualquer modo, não precisa mais se preocupar com o que vai ser feito dele. Como já está morto não precisa mais se impressionar com as dificuldades da vida. Neste estado tudo é diferente, não se entende nada a mais... Fica-se um pouco conturbado, entretanto se sabe o que ocorre com um corpo de alguém morto. Está sendo posto num local estranho. Seus membros estão sendo manipulados, está sendo quase que aprisionado em um local pequeno e estreito. “Vê” pessoas o olhando, não sebe quem são.  As vê falarem, dizem alguma coisa, mas não entende mais sua linguagem, pois está morto! Sente que estão demonstrando vários semblantes e sentimentos. Não as reconhece, não sabe quem são. Engraçado, quando se morre não se reconhece mais ninguém, todos se tornam estranhos. Na TV não era assim, sempre os mortos reconheciam seus parentes. Percebe alguém cobrindo seu corpo com flores, “sente” cheiro de parafina de velas. Isso ele reconhece, pois sempre as ascendia aos mortos que fizeram parte da vida dele. Observa algumas pessoas as quais nunca viu em vida. Estranha-se tudo nesse estado, vê-se o mundo por um ângulo que jamais se viu antes.  Está à mercê dessas pessoas. Não poderá fazer mais nada por ele. Sente que algo ocorre, parece que seu corpo está sendo conduzido de novo, está dentro de algo e, em movimento. Vê a luz do sol, o sol tem um brilho estranho agora, seu calor não queima mais o rosto, não sente sua pele suar. De repente a luz do sol some. Está totalmente guardado dentro de algum lugar: pequeno e estreito.  “Percebe” que começa a ser baixado a algum ambiente, “sente” que o clima em volta é frio e úmido... Começou a “entender” melhor as coisas. Morreu... Mas só agora consegue recobrar o senso de ser humano de volta. Ele é uma luz apenas, deve ter passado a algum plano onde se entende o que se está acontecendo melhor. Está sendo sepultado! Já está num cemitério que não sabe qual é. Não sabe se é algum que frequentava de vez enquanto, ou, se é o da infância dele. Nossa! O tempo a quem morre passa rápido, ou melhor, acaba. O tempo acabou para ele. Isso! O tempo não existe mais. Quando se morre o tempo para de correr, não se envelhece mais do que já está. Não precisa se alimentar mais, nem mesmo tomar banho. Não é mais preciso fazer as coisas de um humano vivo. Está livre! Ele Percebe tudo agora. Já foi velado, e nesse momento, já está sendo sepultado. Não havia muitas pessoas em seu enterro, somente os que em vida achava que gostavam dele. Não teve filhos, por isso não deixou tantas lembranças. Em vida, plantou muitas árvores, escreveu livros, mas não teve filhos, nem por engano. Teve amores, muitos amores. Nenhum foi eterno, por isso ninguém chorou por ele de paixão. Não os interessa mais agora. Isso não importa. Sente que algumas pessoas se consternaram com sua morte, parecem sinceras. Mas tudo tarde demais. Percebe, somente agora, que não deixou herança a ninguém, de nada, e nem acumulou bens...   O mundo se torna mínimo quando se morre! Está sepultado agora, debaixo de toneladas de terra. Todos já se foram e, o deixaram. Sente que suas carnes começam a ser esmagadas pela terra. Seus ossos ainda suportam o peso, o qual está esmagando, aos poucos, seu corpo. Sente a terra invadindo o local pequeno, no qual foi posto, antes de ser enterrado em seu caixão. Acredita que haja pessoas lá em cima, pois pelo decorrer do tempo humano, terrestre, hoje já deve ser seu sétimo dia. Ele era cristão católico, por isso a tradição era visitar a sepultura ao sétimo dia, no falecimento de alguém. Mas seja quem for não precisava ter vindo, pois já percebe toda sua matéria em putrefação, sendo arrancada dos ossos, pelos vermes da terra que o cerca agora. É tudo fantástico após a morte. Enquanto alguns, se recordam dele, que já se foi, é consumido dia após dia pela terra e pelo tempo, que corre somente aos vivos. Ele deixou de existir, é só uma lembrança na memória de alguns, e tão logo, nem isso será mais, pois as pessoas que choram hoje morrerão também um dia. Morrer é complicado, ainda mais se for com dor, mas depois tudo se modifica. Está livre de tudo e de todos. Está se transformando numa luz eterna, num espaço diferente. O corpo começa a se dissipar. Nem seus ossos existem mais, praticamente retornou ao pó (como previsto e escrito em algum lugar). Por que tudo já vem escrito antes da gente nascer? É para isso quê se precisa aprender a ler e a escrever em vida? A matéria foi devorada pelos vermes que vivem transitando no subsolo da terra. Está sumindo, não há mais quase nada dele no mundo. Morrer é um mistério brilhante, se pensa que a vida é para sempre, nem a morte é. Não se fica um fio de cabelo pra se contar a história. A natureza satura tudo. Não interessa se foi bom ou mau, egoísta, ou fraterno. Na morte, isso não pesa nem mede. Agora tudo acabou pra ele. Pois morreu. Já se passou muito tempo da morte dele, não vem ninguém mais ao seu túmulo. Ficou só, eternamente, eternamente só. Até na morte “se sente” solidão. É só um fio de luz agora...

 

 

 

 

 

 

Enterro de Anjo







O cortejo fúnebre passa pelo meio da rua calçada de tijolos aparentes. A tampa do caixão era levada por uma quinta pessoa como se fosse necessário conduzir o corpo à amostra, a fim de que todos os vizinhos e passantes o olhassem. Estava adornado de flores amarelas, o caixão era de tábuas de assoalho, forrado com morim branco (um tecido muito barato). Era um cortejo de poucas pessoas, talvez apenas familiares do morto, ou “anjo”. Era o corpo de uma criança de uns quatro anos de idade, arrumado com roupas brancas, ou “mortalha”. Anjo ou anjinho era como se referiam aos corpos infantis vestidos na mortalha. No final da rua estava o cemitério à espera do cortejo. A morte sempre é um acontecimento particular, familiar e pessoal. É algo que machuca e deprime várias pessoas de uma mesma família. A morte pode ser de qualquer membro, mas não importa a dor, apesar de imensurável, é desprezada por outros. Entretanto tem-se necessidade de se mostrar o morto aos outros que rodeiam a comunidade ou o local onde se viva. Os mais cruéis ainda podem dizer nesse momento à dor do próximo: “O mundo não vai parar pra você só por que alguém da tua família morreu...” A mãe do anjo ia caminhando logo atrás do caixãozinho, amparada por outras mulheres. Não havia homens adultos no cortejo, apenas meninos e meninas, crianças. Antigamente era assim, se uma criança morria, convidavam outras a enterrá-la. Vez por outra, batiam na porta de casa, convidando minhas irmãs mais velhas para o enterro de alguma criança que houvesse morrido pelo bairro. Pudera, meus pais tiveram muitos filhos. Ficava desesperado, tinha receio que me chamassem, não gostava de seguir os cortejos fúnebres. Quando menino, tinha medo (pânico) de ter pesadelos à noite com o falecido. Imaginava que viria me buscar, puxar meus pés ou simplesmente falar comigo. Agora, não fazia idéia do porquê somente a mim, já que havia tantas crianças pelo bairro. Certo dia, minha irmã mais velha “de todas” (pois eram cinco), foi chamada para segurar a alça do caixão de um anjinho. Nunca me esqueço dela ajudando a conduzir o caixãozinho do morto. Quando morria um adulto, só os adultos iriam ao funeral. O cortejo, da casa do morto ao cemitério, era também chamado de “enterro”. Toda vez que passava um cortejo fúnebre, pela frente de casa, pensava: “Lá vai um enterro”. Aquilo me intrigava e me deixava aterrorizado. Ao mesmo tempo me causava curiosidade, algo biológico. Pra mim era um “espetáculo” ver um corpo, arrumado dentro de um caixão, rumo ao sepultamento. Aquele sujeito imóvel, inerte, sendo conduzido pelas mãos de outros, me dava uma grande aflição no coração e na alma. Tinha medo de morrer. Muito medo mesmo! Dificilmente participava de um velório, muito menos, de um enterro. No entanto, quando ia ao cemitério para prestar homenagens aos finados, ou simplesmente, visitar a cova no sétimo dia de algum falecido, meu psicológico ficava em estado de grande apreensão. Eu sentia certo prazer de ali está. Um prazer de compaixão, nada de perversidade (Deus me livre!). Era um algo que se materializava provocado pelos convites que se ouvia na rádio local ou, “voz comunitária”. Antigamente, nas cidades pequenas, quando alguém morria, saia na rádio ou na “Voz” a divulgação do convite, para o povo ir ao enterro. “Voz” era o nome que a gente dava ao “boca-de-ferro, ou alto-falante comunitário”. E, no final do comunicado, dizia-se sempre: “... desde já agradecemos a quem comparecer a esse ato de fé e piedade cristã”.  De certa forma, havia um tom de exagero nessas palavras. Parecia que era uma necessidade de se deprimir aos outros também. Assim como ouvia de minha avó materna, que quando passasse um enterro em frente de casa tínhamos que ir ao terreiro, pegar um punhado de terra e atirar atrás do cortejo. Significava que, mesmo não indo ao sepultamento, “ajudaríamos”, de forma espiritual, a se enterrar aquele corpo. Seria uma forma muito cômoda de não participar, fisicamente, do ato. Todavia, na consciência, estaríamos colaborando com o “ato de fé e piedade”. Minha avó materna costumava me levar ao cemitério para acendermos velas aos entes falecidos, ou a outros conhecidos. Tudo tinha um ritual. Íamos sempre no final da tarde, pois assim, o sol já estava mais “frio” (melhor dizer, se pondo). Logo aprendi na escola que se o sol esfriasse o mundo acabava. Tínhamos que tomar banho na volta e na ida ao cemitério, como uma espécie de “purificação”. Levávamos água, fósforos, velas e até uma pequena faca de cozinha para se cavar a terra, caso estivesse muito dura. Não se falava muito, apenas tínhamos que “rezar”. Minha avó sempre chorava. Tudo fazia parte do ritual. Dáva-se uma volta pelas redondezas, para se verificar, se novos corpos haviam sido enterrados por ali. Após alguns minutos, voltávamos às velas, a fim de conferir se não as tinham apagadas. Após o tempo empreendido aquilo tudo, tínhamos que ir embora, já havíamos cumprido nosso papel de bons cristãos. Em casa, ficava imaginando aquele lugar, meio que sem ninguém, apenas os mortos enterrados. Tinha a impressão de que havia uma obrigação da parte da gente com aqueles finados lá depositados (ou sentia sempre a presença invisível de alguém). Assim nos ensinavam a guardar a memória dos falecidos. Como morávamos, praticamente na rua do cemitério, todos os dias, nos finais de tarde, olhava para o local, da janela de casa, parecia que sempre algo ali me atraía, não sei dizer o “quê”. No meu tempo de menino no interior, o mundo vivia sua “plenitude ingênua”. Criança não morria de “bala perdida”, violência cometida por adultos isanos, por vícios de drogas, ou todas essas coisas modernas que se fundou para ceifar vidas ainda na Infância. Tudo era coisa que ocorria apenas em cidades grandes, do sul ou sudeste do país e na capital do meu Estado... Mas o mundo cresceu, e eu também. As mazelas adquiriram novas e modernas denominações. Os vícios e seduções mundanos adentraram a infância, de forma horrenda e aterradora. As doenças, que matavam meus pequenos vizinhos, eram chamadas de “doença-de-criança”, ou qualquer nome popular, inventado pra se justificar o desaparecimento dos mesmos por esse ou aquele mal. Hoje, até de doenças oportunistas, devido até AIDS, as crianças morrem... Imaginar que em criança tinha o maior pavor, de ver outra da vizinhança morta, dentro de um humilde caixão, era um dos algos que me causava estado de puro desespero e pânico. Presentemente as crianças morrem muito mais que antes, de causas inimagináveis à minha mente infantil da época, dos anos setenta e oitenta, no século XX. Os papéis se inverteram tanto que, atualmente, se tem medo das crianças vivas, pois muitas delas são capazes de tirar nossas vidas a qualquer momento. Num sinal de trânsito qualquer, ou num assalto a um coletivo, em qualquer hora do dia e até mesmo da noite. O menino que olhava da janela da sala de casa, em puro pânico, ao ver os “enterros”, conduzidos pelas ruas de sua infância, despertou em mim, ou talvez, nem tenha morrido, e me fez escrever essa crônica fúnebre sobre os “anjos mortos”.

 




O Herói







Na infância, possuía uma relação de temor e admiração para com o cemitério. Na cidade só havia um, e único. Por isso, de forma física, o local era o singular exemplo que compunha o conceito desse cenário, em minha mente infantil. Até minha primeira vez de se viajar e ir morar em outra cidade, o cemitério da minha infância era o conceito fundamental, prático e único, de sepultamento humano. Quando as primeiras televisões começaram a adentrar em nossas casas, no século passado, foi então que comecei a ver outros moldes desse local, os quais me inquietavam a alma. Observava, através dos raros programas, como mostravam ou figuravam cemitérios na mídia. Lembro de um capítulo do famoso seriado: o “Bem Amado”, exibido num dos canais de TV, que se tinha como alternativa a se “apreciar” a tela. Era um absurdo, a mim, com valores totalmente arraigados ao meu mundo infantil, àquela época, observar uma cena dramática de TV, realizada dentro de um cemitério. Pensava: “A televisão não respeita o cemitério”. Pra mim era também um lugar sagrado, de tristezas, rezas e saudades. Um dia meu pai comprou uma revista em quadrinhos, do Batman. Trazia a origem do herói depressivo. Pra quem não sabe, o Batman é um herói dos quadrinhos, cheio de inquietações e transtornos emocionais. Quando criança, Batman assistiu a seus pais serem executados a tiros por um bandido, num beco escuro. Tudo se passou na fictícia cidade de Gothancity (na verdade, Nova Iorque). Nos quadrinhos que lia, Batman saía de sua mansão, todo encapuzado, após andar por toda noite, como sempre o fazia, e também, a caçar o marginal que matara seus pais. Ia ao cemitério de madrugada para ver o túmulo dos mesmos. O cenário me fascinava. Tudo feito em traços góticos, não lembro o nome do cartunista. Mas os traços me arrebatavam, pois o cenário do cemitério era muito semelhante, a muitos túmulos que via no de minha cidade. Anjos esculpidos em mármore, de asas abertas, cruzes grandes e negras, lápides arredondadas na parte superior, umas com e outras, sem cruzes. Aliás, demorei um tanto e meio para descobrir por que algumas tumbas, que via em minha infância, não tinham cruzes e nem se acendiam velas nas mesmas. Eram pessoas de outros países que não seguiam a mesma religião que a maioria de nós seguia. Pensei que fossem “crentes”, mas meu pai me disse que eram “mulçumanos”. Então, foi o suficiente, para que eu respeitasse para sempre o modo de religião e crença dos outros e ponto final. Entretanto, até se descobrir isso, aprendi, através de minha avó materna que: “eram pessoas que não rezavam quando vivas, por isso foram desprezadas após a morte. Sentia até pena desses, porém, só depois que descobri do que se tratava, de verdade, respeitei o ensino que minha avó materna pôde receber e nos repassar... Voltando ao cemitério dos quadrinhos, do Batman, me envolvia mais e mais por aqueles traços, de forma mórbida e curiosa. O Batman ali representado chorava de joelhos, diante do túmulo de seus pais. Falava-lhes, entretanto, não obtinha resposta. Como ia a noite, ou madrugada ao cemitério,  não ia como o homem que o era. Ia de indumentária de herói. A expressão posta pelo desenhista em sua face me comovia também. Era um Batman muito humano, diferente dos heróis que atiram laser pelas pontas dos dedos ou mãos, tem visão de raios-X, super força, e outros poderes especiais. Não levava flores, nem acendia velas. Logo entendi que o Batman tinha uma religião diferente da minha, mas que se emocionava como eu, por seus entes queridos.

Sem falar também, que o Batman, ou homem-morcego, usava capa e máscara de cores escuras: cinza, preto, e azul-marinho. Depois que tudo passava, e sua súplica terminava, o herói saia caminhando pelo plano do cemitério. Era um terreno raso, sem relevos, amplo, e com um bem cuidado gramado. O desenho, como numa fotografia aérea, mostrava o herói em uma visão de cima pra baixo, cabisbaixo, caminhando entre as centenas de túmulos. Um campo mórbido. Por muito tempo, ao ler e reler aquela história triste daquele herói, chorava sozinho e sentia medo de perder meus pais também. O herói dos quadrinhos me apresentava um hábito que já haviam me ensinado desde cedo: sempre visitar o “lugar-dos-mortos”. O tempo passou, perdi a revista em quadrinhos, por muitos anos deixei de ir ao cemitério. Alguns anos se passaram, e eu sem visitar o local onde meus entes estavam. Depois que minha mãe foi sepultada ali, perdi o entusiasmo humano de ir até lá. Um cemitério não precisava de um herói vivo, só lhe prestam valor se morto estiver. Batman era um herói solitário, vingador, triste e inquieto. Mas nunca a grande maioria de seus fãs percebeu ou percebe isso.

 




O Sorriso








Era um túmulo enegrecido pelo tempo e épocas. Era de mármore, como a maioria dos antigos e históricos túmulos de nossos cemitérios. Estava localizado nos fundos da necrópole, longe de todos, digo, das quadras mais próximas ao cruzeiro central. O cruzeiro sempre se apresentava com muitos resíduos de ceras antigas e recentes, e de outras coisas postas por ali. Sinais de rituais de outros cultos religiosos. Havia muitos copos descartáveis com água, garrafas de bebida barata, flores, fitas coloridas. Uma “mistura” de crenças e religiões.  O túmulo não possuía vestígios de visitas recentes. Não havia flores e nem velas. Na verdade há muitos anos não se acendia uma única vela naquele mausoléu, visto que, não havia nenhuma marca, ou detrito, de cera ou parafina.  Datava das primeiras décadas do século XX (1900 e alguma coisa...).  Naquele tempo, as pessoas mais recatadas construíam belos túmulos, com banco e tudo, para se passar mais horas junto do local onde seus entes queridos jaziam. Muito diferente do tempo de hoje. Mostrava uma foto de uma moça, jovem e bonita. Talvez seus 21 anos. De que poderia ter morrido? Havia dia, mês e ano de nascimento e falecimento. O tradicional “Eternas saudades” de seus familiares estampava a pedra de mármore. Mas como de costume, não havia o porquê daquela moça morta. Nunca dizemos do que morreu nossos mortos. Diz-se que se têm saudades, mas pouco se vai ao cemitério, apenas nos dias dos finados, de novembro, se assiste o povo lotar esses locais. Ninguém sente saudade de morto, mais da pessoa que foi em vida, isso sim. Geralmente por convenções, talvez, não se grava no mausoléu do que se faleceu aquele ou aquela, que ali jaz. Se pudéssemos dizer do que faleceram, poderíamos ajudar a muitos que morreriam do mesmo mal, ou de acidente, principalmente de trânsito. Mas segue-se a ética social em não se divulgar o motivo, ou causa maior, do óbito do sujeito. É uma forma de se preservar sua memória apenas entre os familiares e conhecidos próximos. Assim, o falecimento de alguém se torna apenas problema dos que vão sepultá-lo. Quando em vida, somos donos de nosso próprio nariz, mas ao perder a energia vital, nosso corpo pertence a nossa família, ou aos que conosco conviviam. São eles que darão o adeus e fim ao que restar de nós.  Como era aos que perdiam um ente querido, antes da invenção da fotografia, e não se podia estampar na lápide uma ilustração do rosto do morto?! Os escultores daquele tempo poderiam esculpir, em mármore ou pedra, as feições do (a) falecido (a); os pintores, pintar sobre tela os traços fisionômicos. Enfim, cada época direciona e direcionou o que se fazer quanto a isso. Mas a foto da moça chamava a atenção por ela sorrir. Quem possa ter escolhido aquela foto, para fixar no mausoléu, quis eternizar o sorriso dela. O olhar na verdade é que despertava o magnetismo ao sorriso, pois a moça sorria apenas com os lábios, sem os olhos. Era um sorriso estampado, de forma artificial, não passava à verdade da felicidade ou da alegria que se pudesse estar sentindo na ocasião, e no tempo, que foi feita a foto. Ou ainda, no tempo em que aquela moça vivia. Seu olhar era cerrado, parecia que não tinha brilho, mas o sorriso era muito bem elaborado e estampado. Era amplo, alguns dentes à mostra, entretanto um sorriso esquisito e disfarçado. Chamava a atenção pela força que invocava no olhar de quem pudesse notá-lo. Já fazia cem anos, ou talvez mais de cem anos! Na foto, a moça já estava morta! Todavia alguém a pôs a sorrir, e assim, realizou o retrato ( herança da era vitoriana. Puseram algo em sua boca, ou lhe impuseram, através de outro artifício, o movimento mórbido de um sorriso enrijecido no rosto, ou apenas nos lábios, já que não sorria com os olhos. Alguns podem dizer que seria coisa do “demônio”. Quando a gente rir, de verdade, e em vida, os olhos acompanham o movimento dos músculos do rosto, sorrindo por inteiro. Os cabelos pretos pareciam bem penteados. Não parecia está maquiada. A foto era de quase cem anos atrás, ou mais... Mostrava apenas os ombros e a cabeça, se percebia que a moça estava deitada mesmo, e morta! Talvez nunca tenha tirado um retrato em vida. Tudo isso fazia parte, na verdade, dos costumes de outras épocas onde se faziam retratos de pessoas mortas, para se guardar de lembrança. Pois como era um ato caro e dispendioso, as pessoas pagavam somente após a morte do parente, e assim retratá-lo e ficar com a lembrança do sujeito, nem que fosse já morto. Agora, esse hábito, está fora de uso. Os tempos são outros e totalmente diferentes daquela época. Quem sabe, “pós-morta”, teve esse prazer final, sem poder gozá-lo é claro, em vida? Será que foi sepultada sorrindo? Será que teve algum colapso e morreu daquele jeito? De rir?! Na foto, parecia morta mesmo. Mas só quem olhasse com cuidado perceberia. As fotos são postas nas lápides, para que sempre nos lembremos da fisionomia daquele ente querido, o qual se foi. A fotografia foi inventada nos meados do século XIX, deveria ser artigo de luxo até poder se popularizar. A moça do sorriso, quiçá não vivesse o suficiente, para conseguir ostentar a própria imagem na parede da sala de sua casa. Ou, quem sabe, ainda, por não possuir nenhuma foto, sua família resolveu prestar-lhe aquela homenagem final, a que sempre pudesse ser vista e admirada pelo sorriso que ostentava em vida. Mas uma pessoa morta, sorrindo, pendurada na parede de uma casa?! Estampando um forçado sorriso?!... De qualquer forma, a foto chamou a atenção naquele dia “cinzento” e quente.  O quê poderia ter levado a família a se construir aquele sorriso, no rosto de uma pessoa morta, ou ainda, por que teria ocorrido aquela idéia macabra?! E será que outras pessoas já tinham percebido aquilo tão macabro ali? Os mortos parecem mais mortos nas fotos que nos túmulos sepultados. Se os vemos nas fotos, é por que ali estão. Quando não os vemos nas fotos, teremos dúvidas se estão ali mesmo.


Sábado Bento







Numa manhã de um sábado qualquer no cemitério. Devia ser umas seis horas, era cedo mesmo. Começou a caminhar e a rever os locais e túmulos de sempre. Tudo igual. Entretanto, com sua presença, sentia que os mortos se confortavam, principalmente, os que não recebiam mais a visita de nenhum familiar. Não entendia o porquê de sua satisfação ao se fazer aquilo. Não era algo que o fazia sorrir, ou simplesmente chorar. Era um ato cristão de conforto mútuo. O cruzeiro era o local de maior familiaridade da necrópole. Sempre parecia ser muito visitado. Normalmente as pessoas que vão ao cruzeiro, não possuem parentes sepultados naquele local, lá prestam suas homenagens póstumas aos que já se foram, seus entes queridos. Há sempre flores, velas e outros objetos que se distorcem do cenário de homenagens aos mortos. O cruzeiro é a representação do crucifixo de Cristo Jesus. Geralmente são em locais isolados do cemitério, para que se possa vê-los de longe. Para se ascender as velas que se leva, é preciso se por praticamente de joelhos. É preciso se prostrar aos mortos ao serem lembrados diante dos cruzeiros. Fica estampada nesse ato a promessa da salvação eterna, como a de Cristo, que prometeu ao ladrão Dimas, naquele mesmo dia de crucificação, estar com Ele no Paraíso. Era sexta-feira. Dimas era o nome do ladrão, condenado à morte, junto a outro criminoso. Ambos crucificados, um de cada lado de Jesus. Mas no final, apenas Dimas se arrepende de seus mau-feitos e é arrebatado pelo perdão de Deus. Rezam as lendas antigas do mundo, que quando José e Maria, e o menino Jesus, fugiam do rei Herodes pelo deserto, foram cercados por ladrões, o que era muito comum naqueles tempos, pois os desertos são sempre locais traiçoeiros. O casal explicou aos bandidos que precisavam fugir, senão teriam o bebê morto pelo rei. Um dos ladrões seria Dimas, ainda jovem, que olhando ao menininho, lembrou-se de sua própria mãe. Os deixou ir para que a criança se livrasse da morte. Tudo isso surge no cenário dos cruzeiros (ou cruz) onde Jesus teria dado seus últimos suspiros pela humanidade. Às vezes se encontra nesses locais, certos objetos, espécies de oferendas que mexem com a imaginação e nos fazem compor diversas idéias. São garrafas de bebidas, copos com água (morto não toma água, mas Jesus sentiu sede na cruz), fitas de santos de procissão, papéis com alguma coisa escrita, velas de cores diferentes e, de formatos estranhos. Uma senhora de idade, que estava acendendo velas e depositando água nos copos, disse que era para os mortos que não puderam beber mais água em vida. No entanto, se confunde o ato com oferendas de ritos a outras religiões, que também se utilizam dos espaços dos cemitérios as suas celebrações, as quais não são entendidas por uma grande maioria. Mas se deve respeito aos mesmos. O ato de se depositar água aos pés da cruz, constitui um simbolismo cristão, pertinente à piedade humana.  Ainda há os que, comumente, acendem velas aos mortos. São pessoas que seguem o que os antigos pregavam. O cruzeiro tem essa função neutra. Não era palco só de homenagens aos mortos, mas de rituais sagrados a outras crenças. Isso nunca desacatou ao credo, fé, ou moral social. O espaço é público e democrático, não se pode descaracterizar a fé alheia. O respeito a todos, num cemitério, é um dos primordiais e maiores, dos acordos sociais, pois ali, não se determina quem deva ou não ser sepultado, e ainda, quem pode se adentrar ou simplesmente quem pode caminhar pelas ruelas do local. Todas as crenças, religiões e outros mais, podem ser sepultados lado a lado sem haver adversidade social. Assim é a sociedade lá fora. Numa mesma rua há: uma igreja católica, um, ou mais templos evangélicos, um terreiro umbandista ou qualquer outra forma de religiosidade. São assim os cemitérios também. Vivemos num meio igualitário, mesmo tendo diversidade social de crenças, tão diversificadas, pelo povo. A necrópole tem esse conjunto refletido em sua disposição pluralizada de sepultamento, aos membros dessa mesma ordem social, mas pluralizada nas crenças. Ninguém pode ser impedido de se usufruir dos espaços do mesmo. Após se absorver estes conceitos sociais, de crenças tão diversas, se continua a observar mais ainda essa distinção que se mostra nos mausoléus dos finados, de outras partes do mundo. De modo algum se impede o sepultamento de estrangeiros em terras estrangeiras. É tudo um ato de apelo cristão, e de fé. Somente os nazistas já foram impedidos de serem enterrados em certos locais do mundo, por sua crueldade nos campos de concentração a vários povos e pessoas, principalmente contra judeus. São japoneses, portugueses, espanhóis, gente do mundo todo...

De repente alguém chama. Era uma voz idosa de quem parecia ser muito carente. Perguntou se ele estava bem, disse que em parte sim. Não o percebeu direito. Mas resolveu olhá-lo. Nunca havia visto aquela pequena figura. Um senhor de mais de oitenta anos começou a trocar algumas idéias com ele. Deu-lhe toda atenção, principalmente ao dizer que, era um sujeito honrado, por doar um tanto de seu tempo aos que não mais vivem. Pensou até certo ponto está falando com um fantasma de alguém, uma alma penada, que vagava por ali. O ouviu, agradeceu pela boa fé, pela palavra e conversas reconfortantes. Queria falar algo importante, mas ele relutava em não saber. Parecia um enviado a socorrê-lo. Imaginou que iria lhe pedir dinheiro, mas não o pediu como pensou. O ouviu um pouco, pois sabe que os idosos são carentes da presença dos mais jovens, precisam repassar seus conhecimentos, afinal podem morrer e levar tudo consigo. Talvez, quando encontram alguém em que possam confiar e trocar suas experiências de vida, procuram aproveitar. Devia o ver assim o idoso senhor, naquele dia de manhã de sábado. Tanto é que já havia se passado mais de meia hora de conversa. Até que, subitamente, foram surpreendidos pela aproximação de um carro que ia devagar à direção deles. Ficou assustado, pois teme os vivos. Parou. De dentro, saiu um senhor, uma moça jovem e uma senhora, com um bebê nos braços. Começaram um diálogo com o idoso, pediram desculpas pela interrupção da conversa deles. Prontamente o idoso começou a dialogar com eles, ele se afastou aos poucos e foi entendendo o que acontecia. Despediu-se. O tal senhor, que conversava com ele desde cedo, era um rezador (curandeiro) e costumava atender as pessoas nas dependências do cemitério. Achou surpreendente, que estes indivíduos, ainda existam e sobrevivam ao mundo moderno. Não era alma penada, nem fantasma, era um “pajé”. Aquelas pessoas do carro haviam trazido o bebê para ser benzido por algum problema de saúde pelo o qual passava. Continuou o caminho dele, já era hora de ir. De longe observou a cena da bênção ao bebê e aos seus pais. Foi embora e nunca mais viu o tal idoso. O cemitério começava a se revelar para ele como um local, de diversas práticas de religiosidade, não apenas local fúnebre de tristezas e despedidas. Ele ainda devia aprender muito com o que aparenta determinada função, mas é tomado como construção a um cenário de várias e variadas formas à vida. Será que a verdade da ida dele a esse lugar seria para aprender a se conhecer melhor, ou simplesmente e meramente, relembrar dos que já se foram?

 

 


 

Saudades Eternas







“Saudades Eternas”... É a frase mais popular que se ver impressa em praticamente todas as lápides que se encontra sobre os túmulos nos cemitérios. Mas a curiosidade nos toma, à medida que se percebe os cemitérios sempre vazios. De quem são as saudades? Dos que ficam, ou dos que se vão? Mas se há saudade é por que se sente falta de alguém. No caso dos cemitérios, onde só há os restos mortais dos que jazem, seriam as de quem se fica. Entretanto, por que se marca essas palavras no túmulo dos que morrem, se com o tempo a grande massa dos que ficam se esquece dos que se foram? A impressão é de que se pretende passar à sociedade o grande afeto que se tinha aos que se foram. Mas a priori, fica só nessa impressão. De qualquer modo, sentimento é sentimento, não se pode mensurar o de ninguém. Haverá sempre um motivo para se estar nesses locais, pois se vive entre pessoas, e pessoas morrem. Os bons cristãos devem sempre atender aos apelos dos mais velhos e acompanhá-los em suas idas ritualísticas ao local macabro. Pelas antigas tradições, se deve tomar banho e se vestir com uma roupa digna do local. Não se precisa por perfumes no corpo, não se deve usar roupas coloridas, mas as que forem de acordo com o psicológico mortal. Não se pode correr, falar alto, e muito menos palavrões. Deve-se agir como um pequeno adulto. Assim era o comportamento ensinado às crianças, em outras épocas, quando levadas ao lugar. Havia um quê, muito simbólico, de interpretação da imagem para se compor o cenário de saudades em tempos remotos. Enfim, se deveria apresentar um fio de depressão pessoal (que se diga a era vitoriana). Um silêncio de pesar era imposto até se chegar aos portões do lugar. Caminhava-se pelos caminhos apertados entre os túmulos, e finalmente o destino final.  Havia sempre um olhar de caridade e profunda tristeza nos adultos. Não se podia perguntar ou falar nada, a não ser, que perguntassem e comentassem algo, que necessitasse das palavras das crianças como resposta. Vez por outra, se ouvia os resmungos, reclamando dos que vieram acender velas e não as puseram no lugar certo. Manchava-se a cerâmica, posta a se dá melhor aparência, ao local. Após isso tudo, se acendiam as velas e rezava-se o tradicional pai-nosso e as três ave-marias. Os adultos choravam um pouco, os pequenos espiavam em silêncio. Estavam dessa forma, os orientando de como se agir naquele local triste. Mas muitos imaginavam, que aquela pessoa ali sepultada, era tão alegre em vida, por que lembrar-se do sujeito sempre com lágrimas? Se deveria lembrar-se de suas atitudes engraçadas e bem-humoradas também.  Outras vezes já se devia fazer um silêncio especial aos que não estavam enterrados ali, mas eram da família. Via-se nesse momento de devoção, mais dores, pois as lápides não podiam ser acessadas para se acender velas e sequer depositar flores. Nesse momento todos ficavam tristes. Eram pessoas que nunca haviam visto. Suas histórias pertenciam aos adultos da família apenas. Normalmente, ia-se ao final da tarde ao cemitério, pois era sempre a melhor hora de se refletir. Antigamente quando não havia TV, se ouvia no rádio uma prece junto à oração da “ave-maria”, era a prece das dezoito horas. Era lindo ouvir aquilo. Ao cair da noite estava terminada aquela etapa. Nessa época, se valia a pena dizer que o escrito na lápide do morto correspondia aos atos dos vivos. Talvez, a ocorrência da frase tradicional, fosse mais exercida em épocas muito remotas. Em nosso moderno momento, as pessoas estão cada vez mais competitivas umas com as outras, nem lembram mais de seus mortos como em outras épocas. Escrevem “saudades eternas” (por lema ou moda) e eternamente se esquece de ir ao local a celebrar a memória dos que já se foram. Certa vez, algumas pessoas conversavam dentro de um cemitério, à procura do local onde haviam sepultado um parente, não conseguiram o encontrar mais, digo, o local. Perderam a terra. No lugar, já havia o sepulcro de outra pessoa com velas, flores, cruz e tudo o mais. Para não se perder a viagem, resolveram acender as velas pelas laterais do local. Os cemitérios de hoje se parecem verdadeiras cidades. São amplos e extensos. As pessoas tem morrido mais, muitos mais que no passado. Principalmente nos grandes centros urbanos onde a violência tem só crescido.  Ninguém pode ser culpado desses lápsos para com os que já se foram. O mundo tem nos feito assim mesmo. A expressão popular do “saudades...” caberá somente ao morto, pois este, se tivesse ainda como sentir a ausência, dos que o enterraram, poderia ter sim muitas saudades de suas presenças físicas e espirituais. Diferentemente dos vivos que sentem sua ausência. Com tantos avanços tecnológicos nas comunicações, as pessoas preferem se ver apenas pela fria tela do computador e se  falarem pelos aplicativos de celular (superando o péssimo serviço), invés do contato físico. Devido esses novos hábitos as pessoas estão cada vez mais se afastando, fisicamente, umas das outras. Assim, quando alguém morre, é mais prático e cômodo enviar fotos de flores, mensagens com desenhos de anjos rezando, e orações inspiradas na Bíblia a se comparecer pessoalmente, e de forma real.  Isso fará que as futuras gerações desapeguem-se desses momentos tradicionais, cada vez mais e mais. A forma de se enaltecer os valores que restam, aos entes pessoais, está se extinguindo. Até a frase emblemática das “saudades eternas” poderá ficar em desuso. A vida, está cada vez menos desvalorizada, em contra partida o mercado funerário está cada vez mais em alta.




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Comentários

  1. Grande Eros, sempre surpreendendo. Parabéns pelo trabalho, meu amigo. Muito legal. Adorei também as fotografias que ilustram a matéria. Sucesso, meu amigo. Grande abraço.

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    1. É Paulo Maués, Eros, não consegui ativar a identificação. Abração.

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    2. Obrigado caríssimo! Já faz um bom tempo que as escrevi. Foi no mesmo tempo que conheci seu canal no YouTube que havia feito esse blog. Eu também não sei como ativa a identificação, ainda. Obrigado.

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