Antigas Narrativas do Imaginário Amazônico dos Povos Indígenas
LENDAS
DO
JABUTI
LENDAS
DO
JABUTI
Readaptadas das coletâneas orais dos povos étnicos do alto rio Negro na Amazônia
APRESENTAÇÃO
Entre os povos antigos da floresta não
havia a escrita e a leitura gráfica que temos hoje, sendo assim todo o
conhecimento, fatos, histórias e aprendizado às antigas aldeias, eram repassados
aos mais jovens através da oralidade (fala). Os mais velhos se encarregavam de relembrar
sua trajetória de vida apenas falando (articulando). Assim educavam os filhos,
netos e todas as outras crianças da tribo. Por isso os idosos das aldeias eram
muito mais respeitados, pois eram ouvidos. Cada palavra pronunciada tinha uma
finalidade e um significado específico à linguagem daqueles povos. Às vezes,
através de uma simples história infantil, repassavam seus próprios valores
morais ilustrados pelas: inteligência, respeito, tolerância e ações (boas ou
más) dos personagens de suas antigas narrativas. As mudanças do clima,
observações às transformações da mata, das ações dos animais eram também
ilustradas através dessa oralidade, de modo sintético e muito eficaz. A
imaginação e a mitologia étnicas da floresta conduziam ao: início, meio e desfecho
das narrativas. O conjunto de conhecimento, idéias e memória das aldeias estava
garantido apenas pelo “articular” das palavras. Somente os membros de um mesmo
clã conheciam seus segredos sociais e culturais. Nada era escrito nem lido,
apenas falado e ouvido.
A Missão
Lendas
do Jabuti
Olhando para a foto do jabuti, nem parece que ele é
tudo aquilo que estão falando nessa história. Será mesmo que ele é um verdadeiro
presepero?!
Na mata o danado do jabuti era o curumim
mais “enxerido” e apresentado (espertalhão). Não podia ver um bicho quieto no
canto da floresta. Afrontava, pregava peças e desafiava a paciência de todos.
Ele só queria ser o tal. Dos mais velhos
aos filhotes ele enchia mesmo o saco. Ninguém o vencia, sempre queria ter sua
razão, e ainda por cima, diziam que vivia cem anos! Todos morriam, mas o jabuti
não, ele ficava... Pensem num curumim “gaiato”, traquina e confiado! Era o
Jabuti mesmo. O pior de tudo é que ninguém nunca encontrava a mãe dele a se dar
parte do enxerimento dele a ela. Ele não dava mole a nenhum outro bicho ou
criatura da floresta.
A coisa mais difícil de se ver na mata é o Curupira. A
gente só o ouve passando de noite. Tirar uma foto dele nem pensar, ele não
gosta.
Vivia inventando “moda”, contava presepadas
(mentiras e conversas fiadas), estórias, fuxicos, fofocas e tudo o mais que
afrontasse e incomodasse aos outros bichos e entes da mata. Gente, cá entre
nós, há cada bicho besta na mata! Um dia, resolveu cutucar a paciência do
Curupira. O desafiou à brincadeira do cabo-de-guerra! O Curupira, que não
queria dá muita confiança às conversas fiadas daquele “trocinho” disse que não
iria, pois era injusto. Disse ainda que era muito mais forte que o jabuti. Logo
o venceria. O jabuti era pequeno e o Curupira grande. Mas acontece que o jabuti
teve a coragem de dizer que o Curupira não queria brincar porque não era macho!
Era mole. Gente, não dá pra levar um desaforo desses para casa né?! Ele não
gostou nada nada de ouvir aquilo, por isso falou bem na cara daquele bichinho-de-casco
que iria aceitar a brincadeira pra ver quem tinha mais força. E ainda por cima,
provaria que era macho de verdade! Eles arrumaram um dos cipós mais firmes da
floresta (o cipó-titica) e foram pra beira do rio ao desafio de forças. Em geral, a beira do rio é o melhor lugar da
floresta para se brincar, porque depois que acabam todas as brincadeiras a
curumizada sempre finda se divertindo, e ainda, tomando banho e pulando n’agua.
Tudo isso escondido da mãe, correndo o risco ainda da piraíba pegar, além, ainda, da cobra-grande levar para o fundo, ou o pior de tudo, de se afogar no rio. O jabuti conseguiu mesmo levar o Curupira na conversa, era esperto demais! Chegando à beira do rio, pediu para entrar na água com a ponta de cipó que iria segurar. O Curupira não o impediu, o deixou à vontade, pois sabia que o pequeno jabuti não era páreo para ele. O problema foi ter esquecido de que aquele bicho só aprontava! O jabuti disse que teria mais força dentro d’agua. Onde já se viu?! Quem tem força não precisa entrar na água pra se mostrar.
Uma cutia, que é prima de um quati, amigo de um sapo cururu que brinca com um filhote de cobra-grande, contou para um jabuti que depois falou para um amigo meu, que as cobras não comem bicho-de-casco porque dá engasgo. Será que é verdade?! Como não sou bicho-de-casco não vou atrás dessa conversa não. Eu hein! É um disse-me-disse horrível nessa floresta. E só apontam as patas paro o jabuti.
O danado pulou n’agua, pegou a ponta do
cipó e amarrou na calda do boto-vermelho que estava quietinho no fundo do rio.
O boto é o bicho das águas que tem mais força e rapidez (dizem também que é
encantado). Logo o jabuti pôs a cabeça para fora da água e disse ao Curupira que
já podia começar a puxar! Pode uma coisa dessas?! O Curupira, mordido da vida,
com toda aquela história, teve até pena do jabuti, mas começou a puxar o cipó
(quem tem pena do desgraçado vai findar no lugar dele). O espertinho saiu da
água devagarzinho e foi para trás de um pé-de-planta no encharcado e se escondeu
bem ali. O Curupira nem percebeu. O problema também era que de vez enquanto
tomava umas cachaças e não prestava muita atenção nas coisas (já pensou um curupira
bêbado no trânsito?!). Começou a fazer muita força pra puxar o cipó. Força até
demais. Então matutou (pensou) e, percebeu que o “jabuti” tava muito forte
dentro do rio. Mas muito forte mesmo! Até demais da conta. O danado daquele
moleque tava só rindo da cara dele, lá detrás da planta no encharcado. O
Curupira tava suando suando suando, de tanto puxar o cipó, e não estava
conseguindo fazer o “jabuti” sair de dentro d’água nem um pouquinho. Ele puxou
tanto, mas tanto tanto (soltou até um pum de tanto fazer força), arrastou muito
os pés no chão, quase distende seus músculos. Apesar de fazer tanta força, mas
tanta força, não conseguiu por o “jabuti” para fora d'água, findou caindo dentro
do rio... Quando ele abriu os olhos, no fundo d’agua, viu a ponta do cipó
amarrada na calda do boto que estava furioso! O boto não gostou nada nada
daquela arrumação. Deu uma esculhambação daquelas no Curupira!
Se eu fosse o boto me juntaria ao Curupira e a onça para pegar o Jabuti e virá-lo “do lado do avesso.”
Quem é que gosta de andar com um cipó
amarrado na calda?! O boto até perguntou se o Curupira não tinha o que fazer na
mata. O caboclo do mato saiu do rio com muita raiva, estava com vergonha e
cansado de ter feito tanta força à toa. E ainda por cima fez papel de bôbo.
Quem mandou dá confiança às provocações do jabuti?! O boto é quem ganhou dele
no cabo de guerra. O “problema maior”, ele só foi perceber mesmo, depois que
saiu de dentro d’agua. Por ter feito tanta força, mas tanta força e caído
dentro do rio, com muita intensidade, seus pés haviam virado ao contrário. Estavam
curiosamente para trás. Por causa disso ele ficou mais furioso ainda. Chamou
todo tipo de palavrão e “nome feio” que conhecia. O jabuti saiu detrás da
planta no encharcado, rindo rindo rindo da cara dele. Quando o Curupira ia
agarrá-lo pra lhe dá uma boa lição o trocinho correu, entrou numa toca e nunca
mais saiu de lá. Querem saber como ficou o Curupira?! Até hoje anda com os pés
virados para trás. Todo mundo ficou comentando na mata. Só voltaria ao normal,
se o boto deixasse amarrar o cipó-titica, de novo, na calda dele e puxasse com
muita força. Mas quem foi que disse que o boto iria deixar?! Se eu fosse o boto
também não deixava. É melhor nem perguntar do Curupira porque os pés dele
ficaram daquele jeito. A onça era muito amiga do Curupira, o viu muito furioso
e foi perguntar o que havia ocorrido. Naquele tempo os bichos já eram “bicho”, porém,
pareciam gente que nem a gente: falavam, conversavam, brincavam e tinham “a
sorte” de se ter por perto o espertinho do jabuti, que vivia aporriando a
paciência de todos. Ninguém merece ter “um jabuti” na vida meu Deus! Alguém que esteja lendo essa lenda agora deve
está se lembrando de algum vizinho, amigo, colega ou até mesmo de um parente
qualquer. Isso mesmo! É aquele tipo de gente mexeriqueira, enredera, saliente e
enxerida que a gente sempre tem o desprazer, de se ter por perto. Gosta de se
meter na vida dos outros que é uma beleza! Gosta de se “amostrar” (ficar em
evidência). Não tem o que fazer na “mata”.
A onça, que era muito amiga do Curupira, ficou de olhos arregalados e de queixo caído com toda aquela “esculhambação”.
Quem sabe “aquele tipo de pessoa” não é um
parente bem distante do jabuti?! Pois esse curumim era um bicho que ninguém suportava.
Pois bem, a onça, que gostava muito do Curupira, ficou de boca aberta e “mordida”
(chateada) com a molecagem que aquele “apresentado” tinha feito com o amigo
dela. Ela também foi discreta e não ficou perguntando sobre os pés dele. Mas se
fosse outro bicho perguntaria. Há muitos bichos curiosos na mata!
O macaco-barrigudo (parece até gente), com aquela cara de sonso, é muito curioso. Adora uma conversa fiada! Me disseram que o jabuti já enganou ele umas cem vezes! Mas também quem o manda dá ouvidos às conversas moles daquele trocinho né?!
Mas então, a onça resolveu ficar escondida e pegar o jabuti para jantar (ele seria a janta dela), assim que ele saísse de dentro da toca no charco, é claro. Foi se esconder no mato e esperar. A onça é que nem “visagem” (alma de outro mundo), quando espera uma caça ninguém a ouve, muito menos a vê, contudo está por perto sim senhor! Por isso é discretíssima! Deus nos livre de aparecer uma onça na nossa frente, pior ainda, uma “visagem”! A gente morre do susto na hora! Não dá nem tempo de gritar, muito menos correr. O jabuti gritou lá de dentro da toca e, disse à onça que já a tinha visto. Ele tinha era ouvido à conversa entre o Curupira e a onça (enxerido). Ela falou que duvidava dele e que queria era ver se ele tinha a coragem de por a cabeça para fora da toca. Ele disse que era macho e que tinha sim muita coragem. Naquele momento, ninguém sabe explicar por que, mas começou a chover muito. Raios, trovões e ventanias. Era um toró daqueles! O jabuti ia pondo a cabeça para fora do buraco, devagarzinho, entretanto uma árvore virou com a grande força da tempestade tapando quase por completo a toca na qual estava escondido. Por isso, disse que não punha mais a cabeça para fora, porque a árvore havia tapado a entrada. Mas que tinha coragem ele tinha. Disse que era muito macho mesmo! A onça ficou furiosa! A sorte conspirava a favor do danado do jabuti. Até quando dava temporal o peste escapava. A onça, que era muito fêmea, falou que não tinha problema, tinha muita paciência e que iria esperar. Só que a árvore iria demorar muito a apodrecer. Somente quando apodrecesse o jabuti sairia. Quando cai um pau em cima do jabuti, no meio da mata, ele espera apodrecer pra ir embora. Ele não morre não. Isso leva uns dois ou três anos, ou mais, depende do tipo da madeira da árvore. Então passou a chuva, veio o sol e anoiteceu. Depois o sol veio de novo, anoiteceu, e, amanheceu de novo. Passaram-se as semanas, os meses, e, o ano acabou. Dava muita chuva, depois esfriava e fazia muito sol. Veio outro ano, no entanto, de repente, acabou de novo. Os anos foram-se passando todos, um a um... O jabuti, não tava nem ai! De vez enquanto ele debochava da onça: “Ei! Dona onça! A senhora vai morrer de esperar, pois se eu morrer aqui na toca, meu casco ficará pra contar a história, da senhora não vai sobrar nem um pelinho”. E assim ele só ficava rindo rindo rindo da pintada! Ela dizia que não havia problema, tinha muita paciência e esperaria. Ficava se lambendo toda e espantando as mutucas do coro dela. Gente, o tempo passou... A onça ficou idosa, fraca, desdentada e toda doída, de tanto rolar pra lá e prá cá, esperando a saída do jabuti. Por isso, com o passar dos anos, morreu de esperar! Virou carniça: comida de urubu, de formiga e de mosca. O jabuti nunca mais ouviu nenhum rugido da pintada. Como vivia cem anos, esperou que a árvore apodrecesse, depois olhou, devagarzinho... E saiu finalmente da toca. Viu somente a carcaça da velha onça sendo devorada pelas mutucas e tucanderas. “Conheceu papuda”! Foi o que o debochado falou à caveira da pobre falecida. Estava com fome, fazia era anos que não comia nada. Jabuti passa é anos sem comer, sabiam disso?! Ele foi atrás de comer o taperebá. Estava magro e faminto! O taperebá é aquela frutinha de cor amarela da qual ele mais gosta na mata. Geralmente aparece no final do verão. Esperava os taperebás amadurecerem e caírem para ir comê-los. Mas desta vez, ao chegar ao pé, não havia nenhuma fruta no chão.
Não era época dos taperebás caírem. Ele ficou só olhando com uma cara de quem “se dizia inocente”. Os macaquinhos suassu, que estavam lá em cima da árvore, comiam as frutinhas antes que caíssem. O jabuti, pra não ficar por baixo, falou com os macaquinhos. Os macaquinhos o reconheceram, a avó deles já havia passado toda a ficha daquele bicho a eles. Perguntaram se ele queria comer taperebá. Apesar de está morrendo de fome, e morto de vontade, fez de conta que não queria comer era nada. Era esperto! Se dissesse que queria os macaquinhos iriam falar assim: “Suba aqui e pegue seu enxerido!” Os macaquinhos debochariam e diriam que não iriam dar nenhum pra ele. O jabuti tinha uma intuição! Porém, sendo muito mais esperto, disse que duvidava, queria era ver se acertavam pelos menos um caroçinho em seu casco. Na verdade, os macaquinhos só pareciam, mas não eram tão inteligentes quanto o da-na-do do jabuti. Eles disseram: “Tu duvida de nós jabuti”?! O jabuti respondeu: “Duvi-d-o-dó”! Os macacos riram e disseram que acertavam não só um, mas cem, e ainda por cima de olhos fechados. O jabuti disse que pagava pra ver. Foi ai que choveu taperebá no casco do danado do jabuti. Os macaquinhos começaram a pular, de galho em galho, a colher todos os frutos e os atirar contra o casco do safado. Suas mãos eram pequenas, só dava para pegar um de cada vez (parecia mão de gente), tinha cinco dedos em cada). Colhiam e jogavam os frutos lá de cima contra o casco do jabuti. Enquanto isso, lá em baixo, ficava comendo tranquilamente. Era um desdenhador! De vez enquanto, ainda por cima, dizia aos macaquinhos: “Depois eu vou contar um por um porque duvido que tenha mesmo cem taperebás aqui no chão, viu?!” Gente qual é o bicho da mata que pode com a esperteza do jabuti?!
Quando eu vi os suassus jogando os taperebás no casco do safado do jabuti me deu uma vontade de subir na árvore e dá uns cascudos e uns puxões de orelha neles. Já disse tanto para não darem confiança ao jabuti! Não são espertos o quanto pensam! Mas como dizia uma velha amiga minha da mata: “Se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia e muito caro! O problema é que não há dinheiro na mata, só folhas, e folha não é dinheiro. Ninguém iria comprar conselho com folha!
Fim
P. S. Vou findar indo embora dessa mata para outra
floresta. Tô farto das fofocas desses bichos daqui. É um falando mal do outro
todo dia. Só tenho medo de encontrar pelo caminho um “jabuti qualquer da vida”.
Já pensou?! Ninguém merece né?! Fiquei chateado com o Curupira, não me deixou tirar retrato dele, daí tive que desenhar. Pronto, falei!
O único ente da mata que não deu para
fotografar foi o Curupira. Todas as vezes que iam fotografá-lo ele corria, pois
é muito tímido. Por isso o autor teve que desenhar e pintar, com lápis colorido
e giz-de-cera, um “retrato falado” dele. Enganam-se os que pensam que os
jabutis são lerdos, eles correm tanto quanto qualquer outro bicho na mata. É difícil
de agarrá-los, e ainda por cima, quem o pega na mata vai preso pela Lei dos
brancos. Melhor mesmo nem dá confiança para ele. Por fim me apareceu aquele
suassuzinho curioso (no finalzinho da estória), dizendo que o cabelo do
Curupira é vermelho e não amarelo. Foi o jabuti quem me falou que era amarelo.
Será que ele aprontou comigo? Ou será que aquele suassuzinho não conhece
direito as cores?! Olha já né?!
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